sábado, 9 de abril de 2022

o monturo

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual o poeta   descreve o que aconteceu  num monturo que  ele encontrou  no meio de um  caminho ermo.

Monturo não é exatamente um monte de lixo. No  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo, mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; os retalhos desbotados  do que antes foi uma fantasia colorida; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a perseverante  semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um reluzente  lírio.

 

 

 “Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.”(Manoel de Barros)

 

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”(Manoel de Barros)

 

(imagem: “Retalhos”/ Martha Barros)



 

Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com dois pintores: Klee e Miró.

O poeta aprendeu a fazer “imagens” com os pintores : imagens construídas com palavras, cuja cores e paisagens são diretamente pintadas na tela da alma.

 Manoel chama essas imagens de “iluminuras”: um misto de luz com uma realidade ainda escura.

Essa “realidade escura” que participa da criação poética não é como a treva da ignorância e do obscurantismo, ela é como  o escuro no interior do casulo ou do útero, onde cresce o embrião de uma vida nova, desabrindo-nos.

Iluminuras, assim é a arte de  Martha Barros : o que Manoel expressou em palavra, Martha põe vivendo intensamente na cor.

 http://www.marthabarros.com.br/



 Trecho do filme “Língua de brincar”, de Gabraz Sanna:



 

 

Um comentário:

cauepizindim disse...

Hipótese e delírio...

E se cada partícula de cada coisa ou ser, após a decomposição do que fora outrora, guardasse em si alguma memória ou registro da anterior existência?
E se, também, algum Lavoisier dissesse que uma nova organização molecular traria em si a geleia geral de uma cadeia de ancestralidades de tantas partículas?
Seríamos nós, talvez, a lama dos manguezais a prover possibilidades de vidas e, simultaneamente, monturos das coisas esquecidas das particularidades de suas memórias, a prover outras possibilidades de lembrar o que poderia ser a Vida?
Seríamos nós, talvez?
Esse simples lírio vestido de luz...reluzente.