sábado, 9 de outubro de 2021

o mestre passarinho-azul

 

Quando eu tinha 5 anos, antes mesmo de entrar para a escola, queria muito aprender a ler por causa dos gibis que meu primeiro grande amigo, o Edinho, trazia sempre à mão. Edinho tinha dez anos , ele era o irmão mais velho que não tive (sou primogênito).

 Então, minha mãe me colocou  para ter aulas particulares de alfabetização com uma professora vizinha. Lembro até hoje: ela morava numa casa com um imenso quintal,  no meio do qual  havia um grande viveiro com passarinhos  cantando o tempo todo.

Havia especialmente um passarinho que me marcou profundamente. Ele não era o maior  fisicamente , porém  sua cor azul celeste e  seu canto  singular e potente fizeram ninho em  mim.

A mesa da professora ficava perto da janela. Então, na minha imaginação eu  sentia ter dois mestres: a que com dedicação me ensinava as letras da língua, e o passarinho-artista que, como um Orfeu,  me ensinava a língua dos cantos.

Eu amava ser aluno dos dois. A língua que a professora me ensinava eu ainda não conseguia ler, porém a língua do passarinho parecia que já estava dentro de mim. Às vezes, enquanto a professora tentava me alfabetizar na língua dos homens,  na língua do passarinho eu  até já me arriscava a falar, assobiando no meio da aula. A professora olhava para mim e sorria.

Ler palavras eu ainda não conseguia , mas já sabia assobiar a poesia  que  aprendia com  o mestre  passarinho azul.

Quanto à língua dos homens, eu já sabia que “b” + “a” formava “ba”,  que “l” + “a” era “la”, mas eu não conseguia ler o todo que as letras  formavam quando se juntavam  na palavra “bala”. Eu ia das letras  às sílabas, porém não conseguia passar das sílabas à palavra. Via apenas as partes, não via o todo, e o todo é sempre maior do que suas partes.

À noite antes de dormir, eu abria um gibi e  ficava olhando as imagens e identificando as letras e sílabas. Até que houve uma noite em que, enquanto assobiava inocentemente,  vi de repente a palavra “bala”.

Foi instantaneamente que a palavra apareceu, fulgurante. Ela sempre estivera ali, eu é que não a via. Não que me faltassem os olhos do corpo, eram outros olhos que ainda não estavam abertos em mim .  A palavra que abre a mente é como um raio, diz Espinosa.

Pulei de uma palavra à outra, depois às frases,  destas à história inteira, e corri para contá-la para minha mãe , surpresa. Maior do que a emoção que tive ao aprender a ler, foi a alegria de partilhar , recriando, o que li.

A querida professora me ensinou a gramática, mas creio ter sido aquele passarinho azul que me ensinou a ler mais do que palavras;  e é o canto dele que ainda ouço nas poesias de   Manoel ,  no pensar de Espinosa e na voz de  todo libertário.

 

“Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar.” (Manoel de Barros)




- Com Caetano, o "assobio" de Gil:





                                        ( flautista: Antônio Rocha, do conjunto Época de Ouro)




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