Quando eu tinha 5 anos, antes mesmo
de entrar para a escola, queria muito aprender a ler por causa dos gibis que
meu primeiro grande amigo, o Edinho, trazia sempre à mão. Edinho tinha dez anos
, ele era o irmão mais velho que não tive (sou primogênito).
Então, minha mãe me colocou para ter aulas particulares de alfabetização
com uma professora vizinha. Lembro até hoje: ela morava numa casa com um imenso
quintal, no meio do qual havia um grande viveiro com passarinhos cantando o tempo todo.
Havia especialmente um passarinho que
me marcou profundamente. Ele não era o maior
fisicamente , porém sua cor azul
celeste e seu canto singular e potente fizeram ninho em mim.
A mesa da professora ficava perto da
janela. Então, na minha imaginação eu sentia
ter dois mestres: a que com dedicação me ensinava as letras da língua, e o
passarinho-artista que, como um Orfeu, me
ensinava a língua dos cantos.
Eu amava ser aluno dos dois. A língua
que a professora me ensinava eu ainda não conseguia ler, porém a língua do
passarinho parecia que já estava dentro de mim. Às vezes, enquanto a professora
tentava me alfabetizar na língua dos homens,
na língua do passarinho eu até já
me arriscava a falar, assobiando no meio da aula. A professora olhava para mim
e sorria.
Ler palavras eu ainda não conseguia ,
mas já sabia assobiar a poesia que aprendia com o mestre
passarinho azul.
Quanto à língua dos homens, eu já
sabia que “b” + “a” formava “ba”, que
“l” + “a” era “la”, mas eu não conseguia ler o todo que as letras formavam quando se juntavam na palavra “bala”. Eu ia das letras às sílabas, porém não conseguia passar das
sílabas à palavra. Via apenas as partes, não via o todo, e o todo é sempre
maior do que suas partes.
À noite antes de dormir, eu abria um
gibi e ficava olhando as imagens e
identificando as letras e sílabas. Até que houve uma noite em que, enquanto
assobiava inocentemente, vi de repente a
palavra “bala”.
Foi instantaneamente que a palavra apareceu,
fulgurante. Ela sempre estivera ali, eu é que não a via. Não que me faltassem
os olhos do corpo, eram outros olhos que ainda não estavam abertos em mim . A palavra que abre a mente é como um raio, diz
Espinosa.
Pulei de uma palavra à outra, depois
às frases, destas à história inteira, e
corri para contá-la para minha mãe , surpresa. Maior do que a emoção que tive
ao aprender a ler, foi a alegria de partilhar , recriando, o que li.
A querida professora me ensinou a
gramática, mas creio ter sido aquele passarinho azul que me ensinou a ler mais
do que palavras; e é o canto dele que
ainda ouço nas poesias de Manoel , no pensar de Espinosa e na voz de todo libertário.
“Sei falar a língua dos pássaros: é
só cantar.” (Manoel de Barros)
- Com Caetano, o "assobio" de Gil:
( flautista: Antônio Rocha, do conjunto Época de Ouro)
Nenhum comentário:
Postar um comentário