terça-feira, 19 de outubro de 2021

manoel & deleuze

 

O poeta Manoel de Barros diz que aprendeu a fazer necessárias “desaprendizagens” com o pintor Miró. Foi assim:  embora Miró desenhasse de maneira  precisa e técnica, essa mesma técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de  um mundo  novo que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar .

Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela. Apesar de ter reconhecimento e  sucesso , Miró  entrou em crise, parou de pintar: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró: quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

Essa mão esquerda nada sabia de cartilhas ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou arrogante se achando poderosa; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda, com certeza ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia .

Ao começar a desenhar com a mão esquerda, o artista descobriu-se novamente criança nessa mão : cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

Ao desaprender o  “mesmal” da mão direita, Miró  redescobriu mais do que a potência da  pintura : reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira.

 A mão esquerda criava mais do que cores e  formas:  ela  criava para Miró   necessárias  “natências”.

É assim que Manoel, aprendendo a lição de Miró,  resume seu exercício perseverante de natências : “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.” O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda .

A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.

Tive a alegria de participar desse projeto do Marcos e do Mateus . Deleuze & Manoel: filosofia e poesia nascidas da libertária mão esquerda. Partilho aqui o convite. 

https://open.spotify.com/episode/4FnO10MMWRCPppVUDvPRFQ?fbclid=IwAR05IzjS1NvkISUTtbToETUNY6N6hKqIuPCMYUl8eWTyZtKteDf7Thz4Q2Q





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