O poeta Manoel de Barros diz que
aprendeu a fazer necessárias “desaprendizagens” com o pintor Miró. Foi
assim: embora Miró desenhasse de
maneira precisa e técnica, essa mesma
técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo
novo que Miró desejava criar.
Esse mundo novo não cabia na forma
“acostumada” que se tornou Miró e
seu pintar .
Já crescia virtualmente no pintor a
alma nova, porém faltava um corpo para ela. Apesar de ter reconhecimento e sucesso , Miró entrou em crise, parou de pintar: ao invés de
nascer, a alma nova corria o risco de abortar.
Miró desistiu da arte, mas a arte não
desistiu de Miró: quando tudo parecia perdido, certa vez Miró começou a rascunhar com lápis de cor
usando a mão esquerda, mão que ele nunca
usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não
formadas, ignoradas pela mão direita.
Essa mão esquerda nada sabia de cartilhas
ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou arrogante
se achando poderosa; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se
habituou a segurar a mão direita .
Se a mão direita adquirisse a
capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão
esquerda, com certeza ouviria: “ A mão esquerda é perigosa: quer tirar o poder que conservo, ela é subversiva!”.
As duas mãos tinham a mesma idade
biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia .
Ao começar a desenhar com a mão
esquerda, o artista descobriu-se novamente criança nessa mão : cada desenho era
o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e
descoberta.
Ao desaprender o “mesmal” da mão direita, Miró redescobriu mais do que a potência da pintura : reencontrou a alegria da criança
cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira.
A mão esquerda criava mais do que cores e formas:
ela criava para Miró necessárias
“natências”.
É assim que Manoel, aprendendo a
lição de Miró, resume seu exercício
perseverante de natências : “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.” O
poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de
se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda .
A mão direita se liga a uma metade do
cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao
coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.
Tive a alegria de participar desse projeto do Marcos e do Mateus . Deleuze & Manoel: filosofia e poesia nascidas da libertária mão esquerda. Partilho aqui o convite.
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