sábado, 23 de outubro de 2021

Gláuber e Brizola...

 

Desde criança, sempre gostei muito da madrugada, esse espaço que não é mais o ontem , porém ainda não é o amanhã. A madrugada também já não é mais o “tarde da noite”, contudo não é ainda o “muito cedo”. 

A madrugada é depois do tarde e antes do cedo. Ela está  entre o dia que se foi e virou passado  e a aurora que vem de um esperado dia futuro. A madrugada  é um espaço desterritorializado e desterritorializante, tal como os estados nos quais nos coloca a arte: entre a noite e a manhã, o passado e o futuro. Onde muitos dormem, o artista persevera, tentando ficar  desperto e antever auroras...

Pois bem, creio que essa minha atração pela madrugada começou quando eu , ainda criança e durante as férias escolares, fazia companhia à minha mãe. Ela era costureira. Após a jornada diária de cuidados com a casa e filhos, ela ainda arranjava forças para costurar na madrugada. A vida  a isso exigia, era difícil...

Então, eu ficava lhe fazendo companhia  , geralmente assistindo televisão. Àquela época , passavam muitos filmes bons na madrugada, filmes de qualidade. Como eu estava de férias e não tinha aula, ficava até tarde acompanhando  minha mãe , para que ela não ficasse sozinha, e assistindo filmes de arte -  e à  arte também aprendendo a fazer companhia, desde então.

Até que houve uma madrugada em que minha mãe  me ouviu  dando uma gargalhada, como se eu estivesse brincando. Ela perguntou: “Meu filho, tem desenho a uma hora dessas!?”

Na verdade, eu estava vendo , pela primeira vez, o cineasta e pensador Gláuber Rocha. Era num programa chamado “Abertura”, o primeiro programa que , ainda sob a ditadura, abordava abertamente política, artes e cultura. O programa passava na madruga , esse espaço livre. Talvez os milicos tenham  imposto esse horário para que ninguém visse o programa.

Mas eu o descobri e vi.... Não entendia muita coisa do que o Gláuber falava, eu era muito criança. Porém, eu era tocado profundamente pelo seu jeito intempestivo, parecendo um cometa. Até hoje, quando assisto a um filme de Gláuber, parece que revivo aquele espaço entre a treva autoritária e o futuro da democracia, hoje ameaçada por esse presente infame no qual estamos.

Gláuber estava entrevistando um homem do povo chamado “Brizola”. Vale muito a pena assistir a essa  “arqueologia” de nossa subjetividade coletiva,  à luz de tentarmos compreender como chegamos aonde chegamos.





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