Desde criança, sempre gostei muito da
madrugada, esse espaço que não é mais o ontem , porém ainda não é o amanhã. A
madrugada também já não é mais o “tarde da noite”, contudo não é ainda o “muito
cedo”.
A madrugada é depois do tarde e antes
do cedo. Ela está entre o dia que se foi
e virou passado e a aurora que vem de um
esperado dia futuro. A madrugada é um
espaço desterritorializado e desterritorializante, tal como os estados nos
quais nos coloca a arte: entre a noite e a manhã, o passado e o futuro. Onde
muitos dormem, o artista persevera, tentando ficar desperto e antever auroras...
Pois bem, creio que essa minha
atração pela madrugada começou quando eu , ainda criança e durante as férias
escolares, fazia companhia à minha mãe. Ela era costureira. Após a jornada
diária de cuidados com a casa e filhos, ela ainda arranjava forças para
costurar na madrugada. A vida a isso
exigia, era difícil...
Então, eu ficava lhe fazendo
companhia , geralmente assistindo
televisão. Àquela época , passavam muitos filmes bons na madrugada, filmes de
qualidade. Como eu estava de férias e não tinha aula, ficava até tarde acompanhando minha mãe , para que ela não ficasse sozinha,
e assistindo filmes de arte - e à arte também aprendendo a fazer companhia,
desde então.
Até que houve uma madrugada em que
minha mãe me ouviu dando uma gargalhada, como se eu estivesse
brincando. Ela perguntou: “Meu filho, tem desenho a uma hora dessas!?”
Na verdade, eu estava vendo , pela
primeira vez, o cineasta e pensador Gláuber Rocha. Era num programa chamado
“Abertura”, o primeiro programa que , ainda sob a ditadura, abordava
abertamente política, artes e cultura. O programa passava na madruga , esse
espaço livre. Talvez os milicos tenham
imposto esse horário para que ninguém visse o programa.
Mas eu o descobri e vi.... Não
entendia muita coisa do que o Gláuber falava, eu era muito criança. Porém, eu
era tocado profundamente pelo seu jeito intempestivo, parecendo um cometa. Até
hoje, quando assisto a um filme de Gláuber, parece que revivo aquele espaço
entre a treva autoritária e o futuro da democracia, hoje ameaçada por esse
presente infame no qual estamos.
Gláuber estava entrevistando um homem
do povo chamado “Brizola”. Vale muito a pena assistir a essa “arqueologia” de nossa subjetividade
coletiva, à luz de tentarmos compreender
como chegamos aonde chegamos.
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