quarta-feira, 29 de setembro de 2021

manoel de barros: agroval, fortitudo, quilombo

Na rica  fala do povo do pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas.

O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si.

Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do pantanal possa habitar e perseverar  , vivo. Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo.

Migram  para debaixo das asas da arraia não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse pantanal em rascunho  tudo o que vive devém embrião da arraia-útero.

 Sob a proteção de tal Gaia-Pachamama, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida.

Pois quando as águas do pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros e oportunistas  lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca .

Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia antiga, “Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”. 

Pneuma é o sopro que dá  vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em latim,  “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.

Apesar dos perigos em torno, nunca a arraia  se entrega ou desabraça a quem prometeu proteger. Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.

Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?

 

 

 

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.”(Manoel de Barros)

 

“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas.”(Manoel de Barros)

 

“Toda multiplicidade é composta não por coisas prontas, mas por realidades intensivas, pré-individuais, como o embrião de uma realidade nova.” (Deleuze)

 

 

( o poema “Agroval” , que aqui interpreto, faz parte do “Livro de pré-coisas”, cuja capa é de Martha Barros, filha do poeta)







Luiz Melodia & Manoel:



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