Há um poema de Manoel de Barros no
qual o poeta descreve o que aconteceu num monturo que ele encontrou no meio de um caminho ermo.
Monturo não é exatamente um monte de
lixo. Num monturo estão coisas que já
deram sentido a uma vida, coisas que eram
partes de um todo,mas que agora
são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.
No monturo podiam ser vistos: os cacos do que sobrou de uma taça que outrora
já esteve repleta de vinho ; os restos
de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado ; a metade de uma concha que talvez já tenha
guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram no céu aberto como partes de uma asa; a casca
seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha de folhas amarelas que vicejaram verdes na
primavera; os ponteiros parados de um
relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e roído pelos anos em seu solado gasto ; um álbum de retrato cujas
fotos o esquecimento apagou.
Junto a esses restos também estavam: cacos de certezas que pareciam
inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...
Mas debaixo do monturo aconteceu uma
surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda
estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo
sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.
Da semente brotou um caule em rascunho . O caule se enroscou e subiu por um pequeno raio de
sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a semente fez
dele um útero do qual nasceu uma flor: um lírio.
“Poeta é ser que vê semente germinar.
Nas fendas do insignificante ele
procura grãos de sol.”(Manoel de Barros)
"Não é por fazimentos cerebrais
que se chega ao milagre estético.”(Manoel de Barros)
- Trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna:
- Nova música de Caetano:
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