O tordo é um passarinho
canoro possuidor de três tipos de canto. O primeiro ele canta quando quer
marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais
tordos rivalizando pelo mesmo território. Sem precisarem brigar , o
tordo de canto mais potente vence e toma conta
do território, sem que os outros tordos fiquem ressentidos ou queiram se vingar.
O segundo canto o tordo
canta quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso
e sutil, entremeado por silêncios
eloquentes acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea
que escolhe qual tordo será seu companheiro amoroso.
O terceiro canto o tordo canta em dois
momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto
de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida. Esses dois cantos são de gratidão ao sol:
quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não importando o que nele aconteceu; quando um novo sol chega, trazendo com ele um
novo dia. Enquanto os galos cantam apenas
o dia que vem, o tordo também canta grato à vida que recebeu do dia que vai, como os estoicos nos ensinando o “Amor Fati”.
O canto de território e o
canto amoroso são explicáveis pelo
instinto ,porém o terceiro canto parece
querer um território e ser movido por um afeto que vai além do corpo orgânico .
É um canto espontâneo e livre , parecendo um poema, uma obra de arte . O tordo
sobe então até o galho mais alto para horizontar sua visão e cantar um canto de
desterritorialização a todo território dado, ao mesmo tempo se reterritorializando na abertura e amplidão do
espaço .
Esse terceiro canto,
porém, coloca o tordo sob perigo. Pois
nesses períodos fronteiriços entre o dia e a noite a soturna coruja fica alerta
, à espreita para ver onde está o tordo, para fazê-lo de presa .
A mesma arte que
singulariza o tordo, também o põe à
mostra. Porém o tordo não se esconde ou
cala , mesmo sob a ameaça da
morte : ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.
“Inventar
uma tarde a partir de um tordo”.( Manoel de Barros )
“Não há
nunca outro critério senão o teor da existência,
a
intensificação da vida”. ( Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)
"As
coisas da arte são sempre resultado de
ter estado a perigo, de ter ido até o
fim em uma experiência, até um ponto que ninguém consegue
ultrapassar". ( Rainer Maria Rilke )
(Este texto também é uma homenagem ao professor Cláudio Ulpiano, o tordo da filosofia)
(partilho a
capa do livro de Manoel como sugestão de leitura)
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