sexta-feira, 9 de julho de 2021

o tordo

 

O tordo é um passarinho canoro possuidor de três tipos de canto. O primeiro ele canta quando quer marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais tordos  rivalizando pelo  mesmo território. Sem precisarem brigar , o tordo de canto mais potente vence e toma conta   do território, sem que os outros tordos fiquem  ressentidos ou queiram se vingar.

O segundo canto o tordo canta quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e sutil,  entremeado por silêncios eloquentes acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe qual tordo será seu companheiro amoroso.

 O terceiro canto o tordo canta em dois momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida.   Esses dois cantos são de gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não importando  o que nele aconteceu;  quando um novo sol chega, trazendo com ele um novo dia. Enquanto os galos cantam apenas  o dia que vem,  o  tordo também canta grato à vida  que recebeu do dia que  vai, como os estoicos nos ensinando o  “Amor Fati”.

O canto de território e o canto amoroso  são explicáveis pelo instinto  ,porém o terceiro canto parece querer um território e ser movido por um afeto que vai além do corpo orgânico . É um canto espontâneo e livre , parecendo um poema, uma obra de arte . O tordo sobe então até o galho mais alto para horizontar sua visão e cantar um canto de desterritorialização a todo território dado, ao mesmo tempo se  reterritorializando na abertura e amplidão do espaço  .

Esse terceiro canto, porém,  coloca o tordo sob perigo. Pois nesses períodos fronteiriços entre o dia e a noite a soturna coruja fica alerta , à espreita para ver onde está o tordo, para fazê-lo de   presa .

A mesma arte  que  singulariza o tordo, também o põe à  mostra. Porém o tordo não se esconde ou  cala , mesmo sob  a ameaça da morte : ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.

 

“Inventar uma tarde a partir de um tordo”.( Manoel de Barros )

 

“Não há nunca outro critério senão o teor da existência,

a intensificação da vida”. ( Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)

 

"As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar".  (  Rainer Maria Rilke )


(Este texto também é uma homenagem ao professor Cláudio Ulpiano, o tordo da filosofia)

 

(partilho a capa do livro  de Manoel como  sugestão de leitura)



 


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