Era a primeira vez que o menino vinha
à minha casa. Ele tinha 8 anos. Diziam que ele não gostava de ler. Ele estava
contrariado por estar ali comigo, e não escondia isso.
Até que eu lhe disse: “Você sabia que
eu tenho um tesouro aqui em casa?” Ele me olhou de “rabo de olho”, desconfiado.
Mas a simples possibilidade de eu ter um tesouro já melhorou seu olhar sobre
mim. Ele perguntou: “Cadê?”. “Está lá dentro”, respondi. Segurei ele pela mão e
o levei até ao cômodo onde estavam meus livros. Revelei: “Aqui está meu
tesouro...” Ele vasculhou o cômodo com os olhos, deu de ombros e , desapontado,
falou: “Não estou vendo!” Apontei para a estante : “Meu tesouro tem a ver com
os livros...” Ele torceu o nariz , preparando-se para
fugir dali e de mim.
Então, o segurei pelo braço com
cuidado e revelei com voz baixa o meu
segredo: “ O tesouro está numa caverna escondida atrás da estante dos livros...” Pela primeira
vez, ele me olhou sorrindo. Se eu tinha um tesouro escondido , eu não podia ser
um adulto chato, o olhar dele parecia me dizer isso. “Mas como se faz pra
chegar lá?”, indagou com curiosidade de criança que recebeu um brinquedo que
ainda não sabe como brincar. Ensinei:
“Você tem que puxar o livro certo da estante: puxando o livro certo, a entrada
da caverna fica visível e se abre...”
Ele correu e puxou um livro imenso e
pesado...Era um calhamaço : “Obras Completas de Aristóteles”. Falei para ele
que aquele sisudo livro não abria para
cavernas secretas. Ele riu. Depois, pegou outro tijolaço: a “Crítica da Razão
Pura”, de Kant. Ele riu novamente, já
adivinhando minha resposta.
Até que ele se soltou e compreendeu
que aquilo era uma brincadeira, um exercício de “peraltagem”, uma “caça ao
tesouro” cuja aventura estava em procurar a entrada da caverna secreta, mais do
que em achá-la.
A mãe
dele chegou e ficou surpresa em ver o filho brincando com livros, ele que só
brincava com coisas de teclar. Aproveitei para dizer a ele: “Entendo porque você quer tanto achar a
caverna secreta com o tesouro. Quando eu tinha sua idade, descobri uma caverna assim. Quando o mundo aqui de fora
está feio e triste, retorno à caverna para recuperar as forças. Existem várias
entradas para a caverna, uma das melhores é esta aqui...”. Peguei na estante
uma versão infantil de “Moby Dick”.
Quando coloquei o livro na mão dele,
o menino olhou a capa e, admirado, gritou: “Uma baleia! Ela é má?” Respondi: “Ela só é má com os maus...De você
ela vai gostar, garanto. Ela vai
oferecer o dorso dela para
você subir e viajar com ela por mares nunca vistos, mares que você vai adorar conhecer...”
Naquela mesma noite, aquele que seria
meu enteado dormiu abraçado com o livro,
que se tornou a entrada para ele descobrir a caverna do tesouro que
estava escondida dentro dele mesmo.
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