Tempos atrás, um amigo me
perguntou se eu aceitaria lecionar filosofia para seus dois filhos, um de 10
anos e outro ainda mais jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou
durando 1 ano. O mais velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado “Xandinho”.
Certo dia , ele e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao
Xandinho: “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao
ouvir isso, ele olhou para o irmãozinho e, sem dizer nada, o abraçou com
cuidado .
Naqueles encontros, eu
“ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia não
era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e
aprendia que as ideias que valem a pena ensinar se deixam desenhar com lápis de
cor. Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles
colorirem: a forma era minha, mas as cores eram eles que escolhiam para pintar,
com as mãos livres . E eles coloriam sempre multicoloridamente, nunca em preto
e branco.
Perto do fim do ano, houve
um feriadão. Toda a família desse amigo viajou para Londres, incluindo os dois
meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o
Xandinho me narrar o que aconteceu em Londres, mas o menino saiu correndo, como
se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”, diria Manoel de Barros .
Eles foram ver, entre
outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha da Inglaterra passa à frente do
público, e todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai mesmo
me contou o que aconteceu: quando a Rainha , cheia de pompa e ouro, passou
diante deles, todos se ajoelharam diante de seu poder, exceto o Xandinho. Ele
ficou de pé, de braços cruzados, firme, olhando diretamente para a Rainha, que
virou a cabeça para olhar , espantada, o pequeno insubmisso. Quando a mãe
indagou ao menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu :
“Não ajoelho diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai:
“acho que já está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”.
Nesse mesmo dia em que
ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino da
peraltagem me perguntou: “Vai ter prova?”. Respondi: “Não , você já está
aprovado. Com dez.”
"O homem seria metafisicamente
grande
se a criança fosse seu mestre."
(Kierkegaard)
(em homenagem a todos os "Xandinhos" e "Xandinhas" que não se curvam, pois a educação é para pôr de pé)
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