quinta-feira, 15 de julho de 2021

a aula

 

Tempos atrás, o Teatro do Oprimido , de Augusto Boal, foi fazer uma apresentação na Uerj. 

Na primeira cena ,  um jovem da elite entra sorrateiramente   no quarto da mãe , surrupia  um relógio caro e vai  trocá-lo por drogas. Ao se dar  conta do furto,  a dona do relógio   grita: “Maria!!!” .

Mal a trabalhadora  doméstica entra,  já a fere um grito acusador: “Cadê meu relógio!?”Por ter feito faculdade, a patroa empregava sua destreza   com as palavras  para fazê-las de arma a serviço do preconceito e do ódio .

No auge da violência simbólica,  entra o Boal e diz: “parem a cena!”, e pergunta  à plateia variada de estudantes (sendo eu  um deles , um aluno da filosofia ) : “alguém quer tomar o lugar do oprimido para  tentar vencer o opressor?”

Uma estudante de psicologia levantou a mão, foi até  ao Boal  e pegou a vassoura da personagem (a vassoura  era o elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da estudante.  A aluna pediu para  sair...

Outro estudante levantou o braço ,  um estudante de direito.  Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco: comportava-se  mais como um advogado, não como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre, preta, explorada...Também não resistiu.

Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio. Pensei comigo: “Será que a teoria nada pode contra a ignorância armada com palavras?”

Até que olhei para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando a cena.  Ela estava “invisível” a todos. 

Quando  o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer,   a faxineira  tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e  foi atravessando de vassoura na mão por entre os alunos .

O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela.  “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa.  Boal deu-lhe a vassoura da personagem  e  Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais!

Quando a peça recomeçou, a elitista retomou seus protofascismos. Maria ficou em silêncio, mas não de resignação. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”,  e fez dela também seu instrumento de  indignação e "ira santa":  Maria saiu dando vassouradas na opressora casagrandista... E batia de verdade!

Foi preciso toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte, muito forte... Explicaram para ela que era tudo de mentira. Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não acontece com vocês!”.

Ainda nervosa, pediu água com açúcar. Bebeu,  foi se acalmando, recuperou-se. Cheia de dignidade, Maria  se despediu do Boal  e retornou para o seu trabalho  .

Quando ela passou por mim, sorri agradecido para ela e falei: “Obrigado pela excelente aula!”


É Augusto Boal o amigo ao qual se referem Chico & Francis Hime nesta belíssima parceria ( no vídeo, a gente ainda ganha de presente a flauta do inesquecível Altamiro Carrilho). Àquela época, Boal estava exilado em Portugal. A música foi a maneira de enviar uma mensagem ao amigo driblando a ditadura , seus generais e vis censuradores:




 

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