sexta-feira, 23 de abril de 2021

rosebud, a mônada e o tempo

 

O filme “Cidadão Kane”, considerado o melhor filme de todos os tempos, inicia-se com a seguinte cena: um homem envelhecido está deitado numa imensa cama , porém  sozinho. O quarto é amplo e  luxuoso , mas não há ninguém ao seu lado, parentes ou amigos. Há apenas uma enfermeira ao longe aguardando que aconteça o que está prestes a acontecer : a morte daquele homem . Ele segura com a mão uma pequena esfera de cristal, imagem simbólica de sua alma-mônada. No interior da esfera vemos uma paisagem com uma casa simples  toda coberta de neve. De repente, ele arranja forças e pronuncia sua última palavra em vida : “Rosebud” (  “botão de rosa”, da rosa se abrindo). Após isso , o homem deixa cair a esfera de cristal, que vai ao chão e se quebra.  Um jornalista quer saber quais foram as últimas palavras dele. Quem informa é a enfermeira: “O Srº Kane apenas disse: Rosebud”. Esse jornalista resolve investigar quem    foi “Rosebud”, imagina ser o apelido de alguém marcante  afetivamente para Kane. Assim, a narrativa mergulha no passado daquele homem biliardário, considerado     o “dono do mundo” .

A primeira cena que  surge é  uma paisagem toda coberta de neve, como aquela  aprisionada no interior da mônada  de cristal. Mas agora a paisagem está livre  , é parte do mundo real. E vemos um garotinho  com seu pequeno trenó. Um trenó artesanal e simples, porém valioso para o menino em seu brincar inocente e lúdico, como se de nada mais precisasse. Perto dali, da janela de um casebre modesto uma senhora chama: “Kane!”. Era a mãe do menino , aquele que se tornará o poderoso , invejado e temido Cidadão Kane. No interior do casebre também estava  um endinheirado  banqueiro. Na pequena mina da família foi descoberta uma imensa jazida de ouro.  O banqueiro se oferecia para gerenciar  o ouro  e a educação do menino, prometendo lucros, poder, prosperidade.  Embora o menino resistisse   golpeando com o trenó o capitalista-banqueiro, a mãe é convencida a entregar o filho para ser criado pelo homem do dinheiro.  Então , o menino cresceu nesse ambiente onde tudo parece ter seu preço :  coisas,  afetos, homens.  

Durante a história, o jornalista  entrevista  ex-namoradas e  ex-esposas de Kane , porém nenhuma  é ou sabe quem foi “Rosebud”. Desistindo da procura, o jornalista conclui ser “Rosebud” um mistério  que  morreu com seu dono. Embora rico, Kane  deixou  dívidas imensas. Os executores dessas dívidas fizeram  um inventário no castelo de Kane para separar o que tinha valor do que não tinha. O que não tinha valor era lançado numa fogueira . Eles encontraram aquele antigo trenó do menino Kane,  guardado como se fosse um tesouro . Não compreendendo  tanto cuidado com um brinquedo  velho e barato, deram de ombros e disseram: “Isso não vale nada, joga no fogo!”. Quando  caiu no fogo e começou a ser devorado pelas  chamas, o lado de baixo do trenó  ficou visível, e nele estava bordada a seguinte palavra: “Rosebud”.




Revi este filme ontem, e fica a dica para quem ainda não o viu ou pensa em rever. Creio que mesmo para quem ainda não assistiu  ao filme,  o relato que fiz não tira a grande descoberta que é ver diretamente a narrativa, cuja força está nas imagens, direção e edição de Orson Welles. Nenhuma interpretação em palavras desse grande filme consegue esgotar os vários sentidos latentes da obra. Além disso, é um dos maiores filmes sobre o tempo, a “imagem-tempo” ( como diz Deleuze ao escrever sobre o filme). E mesmo quem já o assistiu, sem dúvida pode ter uma interpretação diferente da  que tive, já que o filme é uma “Obra Aberta”, sobretudo o final.




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