segunda-feira, 19 de abril de 2021

vida, instinto, inteligência e arte

 

Segundo Bergson, a vida tem dois jorros ou impulsos : o instinto e a inteligência. Na fonte original desses dois  jorros, instinto e inteligência   coincidiam, como dois virtuais rios que ainda não se separaram da nascente . Quando se separaram, porém, um não desapareceu  totalmente  do outro, e sim um se tornou o  “inconsciente” do outro . Por exemplo, mesmo a formiga, cujo vida é governada pelo instinto, mesmo ela possui um halo de inteligência, essa porém lhe é inconsciente. No homem, ao contrário, é o instinto que lhe é inconsciente, ao passo que a inteligência é a voz de sua individualidade.  Enquanto o instinto é uma força que une o indivíduo ao todo, pois o instinto é a voz do todo, a inteligência é uma força que se expressa e se desenvolve no indivíduo.

Tanto o instinto como a inteligência têm um aspecto em comum: ambos são produtores de instrumentos. A pinça da lagosta, invenção do instinto, equivale à invenção , feita pela inteligência , da tesoura. A pinça é imutável/invariável, ao passo que a tesoura pode ser reinventada de mil maneiras. O instinto inventou asas e as deu ao morcego, já  a inteligência inventou asas que fazem as toneladas de ferro e aço do avião se erguerem no ar. As asas  do morcego , invenção do instinto, ligam o indivíduo à espécie, enquanto as asas do avião trazem a marca da individualidade que a inventou.

Para que a inteligência não se volte contra o todo da sociedade, que é seu inconsciente, a vida pôs no indivíduo o equivalente à necessidade do instinto: a vida pôs o hábito. Essa palavra vem do grego “ethos”, raiz igualmente do termo “ética”. Hábito é aquilo que é adquirido. A pinça da lagosta não é adquirida, ela é inata à espécie. Já o hábito é um comportamento que se repete tendo como base a liberdade. As regras sociais são hábitos socialmente objetivados como imperativos, isto é,  comandos que expressam  o todo da sociedade, todo esse ao qual adere a inteligência individual . Os homens se diferem individualmente pela maior ou menor inteligência , porém todos se igualam  na obediência às regras sociais.

As regras variam de sociedade para sociedade, porém o que não varia é a necessidade de haver regras. Essa “necessidade” de haver regras não é uma forma , ela é uma potência: ela é o equivalente ao que é a necessidade que insere cada abelha na colmeia, cada formiga no formigueiro. Mas  essa necessidade de ter regras também significa a necessidade de criar novas regras,   quando as regras estabelecidas se tornam instrumentos de um poder que quer reduzir  o homem a uma obediente formiga, tal como acontece nas tiranias.

Então, assim como o instinto, a inteligência inventa instrumentos. Enquanto o instinto está  voltado para a  fonte da vida, a inteligência está direcionada  para o mundo de fora, ela está voltada  para a realidade externa que ela transforma com seus instrumentos, sendo os próprios instrumentos a realidade externa transformada ( na tesoura há o  ferro que já esteve abaixo da terra).

E as artes, qual a relação delas com a vida, com o todo da vida? A arte também cria instrumentos, mas são instrumentos que expressam aquele todo original no qual instinto e inteligência, necessidade e liberdade, sociedade e indivíduo, ainda não estão separados. Enquanto a inteligência inventa instrumentos para mudarem a realidade externa, a arte cria instrumentos para potencializarem a compreensão das realidades  interna e externa , individual e social, consciente e inconsciente, física e espiritual. A arte reata os jorros, redirecionando-os à fonte. E esse redirecionar também é o recriar um sentido para essa fonte. O poema também é instrumento , um instrumento da vida : ele ensina coisas que  a inteligência não capta; ele cria elos muito mais potentes do que o instinto. A arte expressa uma singularidade, uma individualidade não egoica, ao mesmo tempo que é a voz de um coletivo heterogêneo e aberto. O instinto é o inconsciente da inteligência; e a inteligência, o inconsciente do instinto. Mas a arte é a expressão do pensar da vida, um pensar que une inteligência e instinto, indivíduo e sociedade, consciente e inconsciente, liberdade e necessidade.


- o texto é um comentário a este livro:



 

Nenhum comentário: