Segundo Bergson, a vida tem dois
jorros ou impulsos : o instinto e a inteligência. Na fonte original desses dois
jorros, instinto e inteligência coincidiam, como dois virtuais rios que ainda não se separaram da nascente . Quando se separaram, porém, um
não desapareceu totalmente do outro, e sim um se tornou o “inconsciente” do outro . Por exemplo, mesmo a
formiga, cujo vida é governada pelo instinto, mesmo ela possui um halo de
inteligência, essa porém lhe é inconsciente. No homem, ao contrário, é o
instinto que lhe é inconsciente, ao passo que a inteligência é a voz de sua
individualidade. Enquanto o instinto é
uma força que une o indivíduo ao todo, pois o instinto é a voz do todo, a
inteligência é uma força que se expressa e se desenvolve no indivíduo.
Tanto o instinto como a inteligência
têm um aspecto em comum: ambos são produtores de instrumentos. A pinça da
lagosta, invenção do instinto, equivale à invenção , feita pela inteligência , da
tesoura. A pinça é imutável/invariável, ao passo que a tesoura pode ser reinventada
de mil maneiras. O instinto inventou asas e as deu ao morcego, já a inteligência inventou asas que fazem as toneladas
de ferro e aço do avião se erguerem no ar. As asas do morcego , invenção do instinto, ligam o
indivíduo à espécie, enquanto as asas do avião trazem a marca da
individualidade que a inventou.
Para que a inteligência não se volte
contra o todo da sociedade, que é seu inconsciente, a vida pôs no indivíduo o
equivalente à necessidade do instinto: a vida pôs o hábito. Essa palavra vem do
grego “ethos”, raiz igualmente do termo “ética”. Hábito é aquilo que é
adquirido. A pinça da lagosta não é adquirida, ela é inata à espécie. Já o
hábito é um comportamento que se repete tendo como base a liberdade. As regras
sociais são hábitos socialmente objetivados como imperativos, isto é, comandos que expressam o todo da sociedade, todo esse ao qual adere a
inteligência individual . Os homens se diferem individualmente pela maior ou
menor inteligência , porém todos se igualam na obediência às regras sociais.
As regras variam de sociedade para
sociedade, porém o que não varia é a necessidade de haver regras. Essa
“necessidade” de haver regras não é uma forma , ela é uma potência: ela é o
equivalente ao que é a necessidade que insere cada abelha na colmeia, cada
formiga no formigueiro. Mas essa
necessidade de ter regras também significa a necessidade de criar novas regras,
quando as regras estabelecidas se
tornam instrumentos de um poder que quer reduzir o homem a uma obediente formiga, tal como
acontece nas tiranias.
Então, assim como o instinto, a
inteligência inventa instrumentos. Enquanto o instinto está voltado para a fonte da vida, a inteligência está direcionada
para o mundo de fora, ela está voltada para a realidade externa que ela transforma
com seus instrumentos, sendo os próprios instrumentos a realidade externa
transformada ( na tesoura há o ferro que
já esteve abaixo da terra).
E as artes, qual a relação delas com
a vida, com o todo da vida? A arte também cria instrumentos, mas são
instrumentos que expressam aquele todo original no qual instinto e
inteligência, necessidade e liberdade, sociedade e indivíduo, ainda não estão
separados. Enquanto a inteligência inventa instrumentos para mudarem a
realidade externa, a arte cria instrumentos para potencializarem a compreensão
das realidades interna e externa ,
individual e social, consciente e inconsciente, física e espiritual. A arte
reata os jorros, redirecionando-os à fonte. E esse redirecionar também é o
recriar um sentido para essa fonte. O poema também é instrumento , um
instrumento da vida : ele ensina coisas que a inteligência não capta; ele cria elos muito
mais potentes do que o instinto. A arte expressa uma singularidade, uma
individualidade não egoica, ao mesmo tempo que é a voz de um coletivo
heterogêneo e aberto. O instinto é o inconsciente da inteligência; e a inteligência,
o inconsciente do instinto. Mas a arte é a expressão do pensar da vida, um
pensar que une inteligência e instinto, indivíduo e sociedade, consciente e
inconsciente, liberdade e necessidade.
- o texto é um comentário a este livro:
Nenhum comentário:
Postar um comentário