quarta-feira, 21 de outubro de 2020

a zeroidade...

 

Quando eu era bem criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não cabe  no  que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também com o pensamento. Foi assim: após aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é , nada. Ele é nada quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado. Mas se engana quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo? E essa interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando mais um zero, nasce o 1.000! Descobri então que o zero não é um “nada”, a não ser que se deixe reduzir  a isso. 

Pois  se a gente  coloca o zero  na companhia de outro número dele diferente, do encontro  nascem outros números, como se dentro do zero existissem potencialidades que a gente só conhece quando ele “desabre” ( “desabrir”  é  prática poético-pedagógica   ensinada pelo poeta Manoel de Barros) . O  zero precisa do 1 para se saber mais do que zero. É a diferença, o “outro”, que o enriquece. Quando o zero  conhece a si próprio, ele vê então o que ele é de verdade:  não um nada , mas um “ovo”, uma realidade cheia de potencialidades.  A ágora grega por exemplo, enquanto  sol da democracia, é um zero-círculo  assim. Depois de fazer  essa descoberta, ainda bem criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de 1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na verdade eu  queria dizer , brincando, que o pensar  faz a alma aumentar em mil seu tamanho. Depois aprendi com poetas e filósofos libertários que o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto mais gente sair e se agenciar  , mais difícil será  para os inimigos do pensamento  nos  reduzir  a nada. 

 

“Às vezes começa-se a brincar de pensar,e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.”( Clarice Lispector)

 

“A zeroidade é o plano de imanência do pensamento.” ( Deleuze)




 - “Zeroidade” é uma ideia criada por Deleuze a partir da leitura que ele faz do filósofo Peirce , que dizia haver três níveis de realidade: a Primeiridade, a Segundidade e a Terceiridade. A Primeiriade é  onde existem as singularidades ( como realidade primeira); a Segundidade é o plano das relações-agenciamentos ( dos “encontros”, diria Espinosa); e a Terceiridade é o plano social das regras ( que devem sempre potencializar as singularidades, e não as apagar fazendo-as de rebanho homogêneo). A “Zeroidade” é o plano inicial, livre e sem dono. A Zeroidade  é, como diz Manoel, um “horizontamento” ; ou ainda como ensina Hesíodo, a Zeroidade é o “Caos Original” do qual tudo nasce.

 

 

 - Creio que o "Nada" de que fala Manoel é como um zero-potencial assim:




 

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