Orfeu foi o primeiro dos poetas. Ele
cantava sua poesia tocando a lira. Até
então, a lira era um instrumento que apenas o deus Apolo podia tocar . Do alto
do Olimpo , Apolo tocava a lira , mas sem cantar. Somente os deuses
a tal música podiam escutar . Orfeu aprendeu a tocar a lira combinando
o som do instrumento com sua voz que cantava. Antes de Orfeu, o canto era uma arte de Dioniso apenas . O canto
dionisíaco era expressão do “Pneuma”: sopro intenso que o corpo
transbordante de vida libera . Quando a vida enfraquece e parece que se ausenta , pensamento e ação em nós também
perdem força, e de certo modo nos tornamos ausentes também . Mas quando a
vida se intensifica , a vivemos sem distância : fazendo-nos presentes à vida também . Assim é
o Sopro de Dioniso : presença da Vida em
nós , Vida esta que em Orfeu se fez canto, para assim aumentar a presença da
Vida em nós. Orfeu não cantava para o Olimpo Inacessível , tampouco aceitava cantar
dentro de templos ou palácios. Orfeu cantava na rua, na praça , nos
campos: em espaços abertos, horizontados . Ninguém permanecia o mesmo após ouvir tal canto : os bons ganhavam coragem , enquanto os maus
perdiam força ; a sabedoria tomava a palavra , a
ignorância era vencida e ficava calada. Até as árvores frutificavam ao ouvirem Orfeu,
mesmo sob o inverno. Fontes brotavam, flores desabrochavam, apesar do deserto. Mas
Orfeu, cantor da vida, despertou o ódio dos cultuadores da morte.
Certa vez, essas forças obscurantistas armaram uma emboscada, prenderam Orfeu e
covardemente o decapitaram, imaginando assim que o silenciavam. Mal se afastaram , porém, novamente ouviram a
voz do poeta , e cantando ainda mais forte . Olharam para trás e viram que o poeta
cantava apenas com a cabeça : vencendo os carrascos, sua arte ainda perseverava.
Onde houver um canto que resiste, nele a
voz de Orfeu ainda vive.
“Sei falar a linguagem dos pássaros:
é só cantar.” (Manoel de Barros)
“Descanse tranquilo onde cantam: os
maus não cantam.” (Schiller)
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