sábado, 24 de outubro de 2020

o devir-vespa da orquídea

 

Na mitologia, uma das nove  Musas se chama “Erato”. “Musa” significa: “conhecimento que vem das artes.” De “Musa” vem “música” e “museu”, pois música e museu também ensinam, com eles também se aprende. Antes de escreverem  suas poesias , os poeta antigos  evocavam Erato  para os auxiliar a encontrarem o que eles queriam  expressar. Pois antes de a poesia se tornar  palavra, ela deve ser encontrada, primeiro, na Vida, no Cosmos.  Erato é a  Musa que auxilia nessa busca e processo de pôr no escrever o que primeiro se experimentou vivendo. Erato inspira   toda obra que nasce do desejo, pois “Erato” vem de “Eros”, o “Amor”. É Erato que parece inspirar também este  verso de Manoel de Barros: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”. A inimiga de “Erato” é “Éris”, divindade obscura ligada ao Ódio e à Vingança. Negadora da  vida, Éris é a  antipoesia.

Deleuze narra um acontecimento que parece inspirar-se também na potência transmutadora  de Erato. Trata-se do encontro amoroso entre uma orquídea e uma vespa. Apesar de não terem  pernas, as orquídeas criaram um meio de se encontrarem.  Entre uma orquídea e outra há uma distância que somente uma arte originalíssima será capaz de vencer. A orquídea vence tal distância da seguinte maneira:  mesmo sem ter mãos, a orquídea  esculpe  em suas pétalas o órgão genital de uma vespa fêmea. Diferentemente de um escultor que esculpe em algo diferente dele mesmo, a orquídea esculpe sua obra em seu próprio ser, em seu próprio corpo, de tal modo que entre a artista  e sua arte já não há distinção. Ao ver o que pensa ser um outro indivíduo de sua mesma espécie, a vespa real  se une à vespa inventada que a orquídea-artista  criou .Ao sair  do seu ato de amor com seu corpo imantado de pólen , a vespa se torna o instrumento de fecundação  entre as duas orquídeas distanciadas no espaço, mas que se encontram e se amam por intermédio das asas   da vespa. Em grego, um dos sentidos de “eros” é “asas”... Assim como Van Gogh criou um girassol feito de tintas, a orquídea inventou uma vespa feita de pétalas, fabricando  um “devir-vespa”. A arte não é imitação da vida, a arte é a vida mesma . Sem precisar de pernas ou se mover no espaço, uma orquídea encontra a outra por intermédio de uma “linha de fuga” feita nas asas da vespa.  A própria natureza ensina que não basta ter ideias que só fiquem teoricamente no pensamento : é preciso inventar os meios que as tornem agenciamentos que fecundam .

“Adoro orquídeas. Já nascem arte.”( Clarice Lispector)

“A arte é bem realizada quando com a natureza se parece; e, por sua vez, a natureza é bem sucedida quando expressa a arte em seu seio.” (Longino)

(  este maravilhoso   livro é uma das inspirações da narrativa de Deleuze  )






-






Nenhum comentário: