sábado, 31 de outubro de 2020

a pessoa coletiva

 

No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, o  pensador indígena Ailton  Krenak nos mostra como os povos da floresta agem para evitar a ameaça de fim de mundo: mais do que o cacique , enquanto “chefe político”, ou o pajé, o “chefe religioso”, assume o comando  aquele  que é uma  “pessoa coletiva”. Nos povos da floresta a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade. Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo. A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”. É assim que o poeta é chamado: “pessoa coletiva”. O poeta expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo, o mundo dos povos da floresta.  A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze & Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo. Segue um trecho do livro de Krenak:

"Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar  com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram  e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas 'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo." ("Ideias para adiar o fim do mundo", p. 28)

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios.” (Manoel de Barros)


- Outro trecho do livro: 

“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido em viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. (...) O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer  a gente desistir  dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre o adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso , estaremos adiando o fim” (p. 26).





Nenhum comentário: