domingo, 1 de maio de 2022

brincatividades

 

Quando eu era criança, meus pais  me presenteavam  com brinquedos simples, era o que eles podiam . Por exemplo, carrinhos de plástico.  Eu recebia tais brinquedos e os guardava,  agradecido.

Pois   brinquedos não me faziam falta, já que  eu gostava mesmo era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados .

Por exemplo, eu gostava de fazer de  carrinho  os chinelos  e sapatos de meus pais. Brincando com as próprias coisas, eu subvertia seus sentidos e usos utilitários.

 Como carrinho lúdico, ao chinelo não faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente desta que todos viam. Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido que metamorfoseia e transfigura  a realidade.

Brincar com  carrinho era  bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,  para subverter  o sentido do que está dado.

Há uma diferença entre fantasia e criatividade. Imaginar que há monstros debaixo da cama é fantasia, e fantasia alimenta o medo. Mas jogar um lençol sobre a cabeça para brincar de fantasma, isso é criatividade que esconjura o medo. O fantasioso é refém de sua mente, já o criativo faz de sua  mente um meio para ressignificar o mundo.

Minha mãe era costureira. Os carretéis de linha  multicoloridos , os tecidos e suas texturas, o pedal da máquina de costura acoplado a uma roda que parecia a “Roda da Fortuna”, todos esses artefatos do mundo eu os via como  arte que convidava ao lúdico.

Muito antes de ler mitologia, creio que foi na máquina de costura de minha mãe que descobri o que era o Fio de Ariadne que se desdobra de um novelo. Pois sobre a máquina sempre havia um novelo imenso do qual se desprendia  um colorido fio de lã para se tecer roupa nova. Na minha imaginação de criança, eu achava que aquele fio era para tecer mais do que roupas,   eu imaginava que com ele uma aranha artista tecia suas teias.

 Na mitologia, “Ariadne” significa “aranha que tece.” Nietzsche dizia que a filosofia é Ariadne que tece linhas de fuga com fios  libertários.

Quando criança , eu sentia que meu brincar não precisava de brinquedo que o dinheiro compra, pois o brincar autêntico nasce de dentro e muda o sentido das coisas que nos estão fora.

Quando cresci, li no poeta Manoel de Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-subversivo.

Manoel diz que a poesia nasce de uma brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra. A brincatividade é estado existencial-poético, antes de ser palavra escrita no papel.

Quando essa brincatividade ganha nossos olhos,  ela se transforma num “transver o mundo”, para assim subverter seus sentidos costumeiros e os poderes dados.

Manoel de Barros faz poesia com essa  brincatividade que mantém vivo um  devir-criança como antídoto ao viver  "mesmal" e "acostumado".




 



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