sexta-feira, 6 de maio de 2022

celestamentos

 

Em uma de suas obras, Cícero nos relata o “Sonho de Cipião”. Esse personagem sonhou que se elevou até às estrelas, e viu de perto o que não tem limites. Cipião viu as galáxias, o berçário dos astros e o infinito espaço que nenhum muro cerca.

De repente, Cipião lembrou-se do Império Romano tido como “dono do planeta terra”, e desceu o olhar para procurá-lo. Mas nada viu de tal poder imperial...

Cipião viu apenas o oceano azul, o pico das montanhas, o verde das florestas e , num horizonte, a lua se pondo, enquanto noutro o sol nascia trazendo um dia novo.

E foi então que Cipião sentiu um misto de vergonha e indignação: ele sentiu vergonha do Império Romano e indignação frente à pretensão do Imperador de se crer o próprio sol, como se  fosse o centro do universo.

Cipião compreendeu o tamanho dessa mortífera ignorância chamada Império e seu poder, que apequena servilmente os homens e os impede de levantarem a cabeça, os olhos e o pensamento para verem  o que de fato tem a grandeza que engrandece.

Até então, Cipião era um adorador do Império e beijava a mão do Imperador sempre que podia. Depois do que viu e aprendeu com o sonho libertário, Cipião se tornou um dos maiores opositores a toda forma de poder autoritário. Seu  sonho   teve grande influência nos sonhos utópicos do Renascimento.

Espinosa , por sua vez, assim chama essa visão libertária :  “ver as coisas da perspectiva da eternidade”. Cipião precisou sonhar para ter essa visão , ao passo que Espinosa a teve e  ensina de olhos abertos, para que  possamos abrir também  o nosso  de ver, conectando   o finito com o infinito, os olhos do corpo aos olhos do espírito.

Em Espinosa, “eternidade” tem por sinônimo aquilo que é “absoluto”. “Soluto” significa  “solúvel”: “o que se dissolve”; e “ab” tem por sentido  “não”. “Absoluto”: “o que não se dissolve”.

 Ver e sentir as coisas da perspectiva da eternidade também  é o que o poeta Manoel de Barros chama de “celestar”, enquanto processo poético, existencial  e pensante.

Ver a partir da perspectiva da eternidade nada tem a ver com colocar-se  “neutro” ou meramente “contemplativo”. Ao contrário, essa perspectiva potencializa o agir no aqui e agora, torna-nos  ativos,  mas sem perder de vista aquilo que realmente importa e nos horizonta e celesta , individual e coletivamente.

É preciso vermos a liberdade, a democracia e o conhecimento de uma perspectiva absoluta  , para que tenhamos força para resistir aos “poderes imperiais”, de ontem e de hoje,  que querem dissolver esses valores que “horizontam” e  “celestam” a vida.

 

“O pensamento é o telescópio de uma astronomia apaixonada.” (Deleuze)

 

( parte do que escrevi se inspira neste belo livro de Hadot. As referências que fiz a Espinosa, Manoel e Deleuze, a epígrafe, não se encontram no livro)

                              ("Não se esqueça de viver" é um verso do poema "Fausto 2", de Goethe)

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