Em uma de suas obras, Cícero nos
relata o “Sonho de Cipião”. Esse personagem sonhou que se elevou até às
estrelas, e viu de perto o que não tem limites. Cipião viu as galáxias, o
berçário dos astros e o infinito espaço que nenhum muro cerca.
De repente, Cipião lembrou-se do
Império Romano tido como “dono do planeta terra”, e desceu o olhar para
procurá-lo. Mas nada viu de tal poder imperial...
Cipião viu apenas o oceano azul, o
pico das montanhas, o verde das florestas e , num horizonte, a lua se pondo,
enquanto noutro o sol nascia trazendo um dia novo.
E foi então que Cipião sentiu um
misto de vergonha e indignação: ele sentiu vergonha do Império Romano e
indignação frente à pretensão do Imperador de se crer o próprio sol, como se fosse o centro do universo.
Cipião compreendeu o tamanho dessa
mortífera ignorância chamada Império e seu poder, que apequena servilmente os
homens e os impede de levantarem a cabeça, os olhos e o pensamento para verem o que de fato tem a grandeza que engrandece.
Até então, Cipião era um adorador do
Império e beijava a mão do Imperador sempre que podia. Depois do que viu e
aprendeu com o sonho libertário, Cipião se tornou um dos maiores opositores a
toda forma de poder autoritário. Seu sonho teve grande influência nos sonhos utópicos do
Renascimento.
Espinosa , por sua vez, assim chama
essa visão libertária : “ver as coisas
da perspectiva da eternidade”. Cipião precisou sonhar para ter essa visão , ao
passo que Espinosa a teve e ensina de
olhos abertos, para que possamos abrir também
o nosso de ver, conectando o
finito com o infinito, os olhos do corpo aos olhos do espírito.
Em Espinosa, “eternidade” tem por
sinônimo aquilo que é “absoluto”. “Soluto” significa “solúvel”: “o que se dissolve”; e “ab” tem por
sentido “não”. “Absoluto”: “o que não se
dissolve”.
Ver e sentir as coisas da perspectiva da
eternidade também é o que o poeta Manoel
de Barros chama de “celestar”, enquanto processo poético, existencial e pensante.
Ver a partir da perspectiva da
eternidade nada tem a ver com colocar-se
“neutro” ou meramente “contemplativo”. Ao contrário, essa perspectiva
potencializa o agir no aqui e agora, torna-nos
ativos, mas sem perder de vista
aquilo que realmente importa e nos horizonta e celesta , individual e
coletivamente.
É preciso vermos a liberdade, a
democracia e o conhecimento de uma perspectiva absoluta , para que tenhamos força para resistir aos “poderes
imperiais”, de ontem e de hoje, que
querem dissolver esses valores que “horizontam” e “celestam” a vida.
“O pensamento é o telescópio de uma
astronomia apaixonada.” (Deleuze)
( parte do que escrevi se inspira
neste belo livro de Hadot. As referências que fiz a Espinosa, Manoel e Deleuze,
a epígrafe, não se encontram no livro)
("Não se esqueça de viver" é um verso do poema "Fausto 2", de Goethe)
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