domingo, 26 de dezembro de 2021

a floração dos seres

 

No filme “Sonhos”, de Kurosawa, há uma cena em que uma criança chora porque um jardim de pessegueiros foi derrubado.

Então, perguntam a ela se o choro dela era devido a não poder mais  comer os pêssegos, ou seja, se o choro  era motivado pelo interesse nos frutos, nos pêssegos.

A  criança responde mais ou menos assim: “Eu não estou chorando pelos pêssegos , pois  pêssegos podem ser comprados  em quantidades no mercado . Eu choro porque nunca mais vou poder ver a floração dos pessegueiros: a floração é única e  não se mede em dinheiro, nem se vende no mercado...”. 

De repente, ainda chorando, a criança vê algo colorido num  canto daquele  jardim desolado. Ela   chega perto para ver o que é: do tronco de um pessegueiro  cortado e violentado, a vida ali resistiu e perseverava , pois pequenos embriões de floração novamente brotaram.

Então, como se tivesse ganho o mais desejado dos presentes,  a criança enxuga as lágrimas e  sorri.

O pêssego é colhido com as mãos, ao passo que a floração é para ser colhida com os olhos, para que o próprio ver nos olhos floresça, e enxergue mais do que o mero dado.

O pêssego é o produto de uma criação, já a floração é a arte que torna indistintos o artista e sua obra ainda em processo e  brotando dele mesmo, em generosa doação.

O pêssego mata a fome do estômago, mas  a floração mata outro tipo de fome:  fome de arte, de poesia e de criação.

As ideias são como os pêssegos, porém pensar é floração da mente unida ao corpo.

A liberdade não é um fruto pronto que podemos colher, a liberdade  é floração concreta no aqui e agora, como ato libertário  fazendo-se.

Há os que cobiçam  os pêssegos apenas para pôr neles um preço e vendê-los no  mercado, reduzindo    os pêssegos a meros meios  para se acumular capital, poder e dinheiro.

Mas há os que veem riqueza na floração dos seres, uma riqueza que não se mede em dinheiro, pois é uma riqueza que se cultiva com a arte, a filosofia, a cultura e a educação.

Porém , é preciso cuidar dessa floração e agir para que ela sempre aconteça , pois odeiam essa floração, e sempre a ameaçam, os ceifadores e destruidores de jardins.

 

"Poesia é florescer pelos olhos." (Manoel de Barros)

 

( imagem: “Pessegueiros em flor”/ Van Gogh)





2 comentários:

cauepizindim disse...

O catador de otimismos
(robertomarques)11.12.21

Era uma vez um catador de otimismos... ele puxava atrás de si um burro com uma cangalha carregada. A cada tropeço em seu caminhar o burro deixava cair algo da carga. Não que se perdesse o que caía, posto que nem o catador nem o burro sabiam dar destinação ao que levavam, sequer para onde ou para quem levavam. Apenas carregavam o que era recolhido no caminho.
Espantosamente, a carga desde sempre e cada vez mais seguia leve. Ia cheia a cangalha...de esperanças.
A carregar a cangalha com tudo quanto fora recolhido, o catador puxava o burro.
Sem que um ou outro soubesse a quem entregariam tantas esperanças, o catador prosseguia na jornada acumuladora...sua riqueza era medida pelo valor de uso do que levava consigo.
Esperanças são certezas de bem desejado, não há esperança de mal. Por isso, elas são levezas que qualquer brisa mais suave pode soprar pelas vidas mundo afora. Uma leveza sem lastro se transforma em otimismo e o vento leva.
O catador de esperanças (perdidas ou abandonadas) as recolhia para reciclá-las algum dia. Então, essa era sua melhor esperança...

Caetano e Eloiza disse...

Obrigada professor Elton, pela gentileza, em nos presentear ....