Minha tia, Dona Emília, me dizia quando eu ainda era
garoto e cursar filosofia para mim era ainda apenas um desejo, um rascunho de
vida futura: “meu filho, existem dois tipos de homem: o homem-mosca e o homem-abelha. O homem-mosca , ao entrar num
lugar o mais limpo que seja, sempre procurará pela sujeira, real ou imaginada,
que ele supõe estar ali. Sobre essa sujeira ele vai pousar , vai construir sua
casa, e daí julgará tudo por essa sujeira: a sujeira sairá pelos seus olhos maldosos;
sairá pela sua boca como palavra de maledicência e ódio. O homem-abelha, mesmo
diante do pântano da maior sujeira, mesmo aí ele achará uma flor onde pousar e
se apoiar. Daí ele olhará ao redor, verá a sujeira, mas verá também que não é
nela que ele está apoiado e, por isso mesmo, será capaz de voar sem se sujar,
uma vez que nesta certeza estará apoiada sua intenção e confiança. E seu viver
irá de flor em flor, mesmo que raras, e seu fazer será um esforço para aumentar
os pontos de apoio para aqueles que , em meio a tanta sujeira, nela não querem
pousar. O homem-abelha é fecundado e se torna instrumento de fecundar beleza,
vida, dignidade, poesia, invenção. Então, meu filho, se esforce o máximo que
puder para ser um homem-abelha: veja onde pousa, creia que sempre você
encontrará onde pousar mesmo onde se multiplicam e mandam os homens-moscas”.
Depois, ao ler os deleuzes, os
espinosas, os epicuros, os nietzsches, os lucrécios, os manoéis de
barros...compreendi que minha tia, em sua sabedoria que , como diz Manoel de
Barros, não “vem em tomos”, compreendi que o lugar onde pousamos é o “dentro da
gente”: é o que pensamos que, antes de tudo, constitui sujeira ou flor. Ao entrar
dentro dele, o homem-mosca só encontra
sujeira : e ele mesmo põe os ovos que se multiplicarão e se alimentarão dessa lama.
O homem-abelha, como diz Manoel de Barros, “dá o amor para que este não
apodreça dentro dele”.
( este texto, que tenta reproduzir as
palavras que ouvi dela, é uma sentida homenagem à querida Dona Emília, falecida
hoje)
3 comentários:
Linda e profunda homenagem.
Profunda homenagem, com a sensibilidade da história que a sua tia contou, te ensinou e agora ensinou a todos nós. Ricardo Mariz
Muito obrigado, Ricardo. Um abraço 🤝
Postar um comentário