terça-feira, 15 de setembro de 2020

dona emília

 

Minha tia,  Dona Emília, me dizia quando eu ainda era garoto e cursar filosofia para mim era ainda apenas um desejo, um rascunho de vida futura: “meu filho, existem dois tipos de homem: o homem-mosca  e o homem-abelha. O homem-mosca , ao entrar num lugar o mais limpo que seja, sempre procurará pela sujeira, real ou imaginada, que ele supõe estar ali. Sobre essa sujeira ele vai pousar , vai construir sua casa, e daí julgará tudo por essa sujeira: a sujeira sairá pelos seus olhos maldosos; sairá pela sua boca como palavra de maledicência e ódio. O homem-abelha, mesmo diante do pântano da maior sujeira, mesmo aí ele achará uma flor onde pousar e se apoiar. Daí ele olhará ao redor, verá a sujeira, mas verá também que não é nela que ele está apoiado e, por isso mesmo, será capaz de voar sem se sujar, uma vez que nesta certeza estará apoiada sua intenção e confiança. E seu viver irá de flor em flor, mesmo que raras, e seu fazer será um esforço para aumentar os pontos de apoio para aqueles que , em meio a tanta sujeira, nela não querem pousar. O homem-abelha é fecundado e se torna instrumento de fecundar beleza, vida, dignidade, poesia, invenção. Então, meu filho, se esforce o máximo que puder para ser um homem-abelha: veja onde pousa, creia que sempre você encontrará onde pousar mesmo onde se multiplicam e mandam os homens-moscas”.

Depois, ao ler os deleuzes, os espinosas, os epicuros, os nietzsches, os lucrécios, os manoéis de barros...compreendi que minha tia, em sua sabedoria que , como diz Manoel de Barros, não “vem em tomos”, compreendi que o lugar onde pousamos é o “dentro da gente”: é o que pensamos que, antes de tudo,  constitui sujeira ou flor. Ao entrar dentro  dele, o homem-mosca só encontra sujeira : e ele mesmo põe os ovos que se multiplicarão e se alimentarão  dessa lama.  O homem-abelha, como diz Manoel de Barros, “dá o amor para que este não apodreça dentro dele”.

 

 

 

( este texto, que tenta reproduzir as palavras que ouvi dela, é uma sentida homenagem à querida Dona Emília, falecida hoje)

 

3 comentários:

Ateliê do Pensamento disse...

Linda e profunda homenagem.

Ateliê do Pensamento disse...

Profunda homenagem, com a sensibilidade da história que a sua tia contou, te ensinou e agora ensinou a todos nós. Ricardo Mariz

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Muito obrigado, Ricardo. Um abraço 🤝