domingo, 30 de agosto de 2020

micropolítica

 

O filme “Um dia muito especial” , obra-prima de Ettore Scola, mostra a visita que Hitler fez a Mussolini no dia 6 de maio de 1938. O nazista e o fascista articulavam para começar a funesta guerra. A macropolítica ensinada nos livros de história é feita de milênios, séculos , anos. Mas a micropolítica se revela no âmbito dos dias , das horas...É com esse pano de fundo macropolítico que se desenrola um encontro aparentemente incomum entre uma mulher ( Sophia Loren), reprimida por seu marido machista e fascista, e seu vizinho ( Marcello Mastroianni) , um homoafetivo que também era perseguido no trabalho e pela vizinhança por sua condição homoafetiva. Entre eles nasce mais do que uma amizade, nasce a compreensão de que a política também é uma questão de afetos , e que uma das funções do poder é nos entristecer, tolher, culpabilizar. Sob a macropolítica do poder nazifascista, são construídas entre ambos pequenas linhas de fuga micropolíticas como resistência político-afetiva ante as diferentes  faces da cabeça autoritária que os ameaçava e perseguia. A face macropolítica do nazifascismo, identificada aos rostos de Hitler e Mussolini, a história nos mostra seus trágicos contornos. Porém, a face micropolítica é ainda mais triste porque ela se revela nas pessoas aparentemente “normais” e “comuns”, muitas vezes autointituladas “pessoas de bem” , que emprestam seus rostos para que a intolerância e a ignorância tenham uma cara persecutória e capilarmente inserida no campo social cotidiano. Enquanto Hitler e Mussolini desfilavam fardados e armados de mãos dadas pelas ruas , as pessoas do povo comemoravam e iam atrás deles, ignorando  que aquele desfile era um cortejo fúnebre puxado pelos seus carrascos. E o mais preocupante quando assistimos ao filme é constatarmos que aquelas pessoas que comemoravam a aliança daqueles carrascos e os seguiam, nos lembram muito certos vizinhos que temos hoje, ou pessoas que vemos nas filas dos mercados e banco , ou aqueles que idolatram o aprendiz de fascista naquele cercadinho em Brasília para gado aferroado. No filme, a única atmosfera humana acontece quando a mulher e seu amigo homoafetivo se encontram. Curiosamente, seus dramas também nos lembram os nossos, suas questões também soam mais do que contemporâneas , suas angústias parecem as que hoje sofremos...E é na arte que eles encontram um meio para se curarem, respirarem e manterem viva uma perseverante alegria de que aquele terror um dia vai passar.









sábado, 29 de agosto de 2020

a nova raça

 

Tempos atrás ganhei de presente um jovem canário. A pessoa que me deu já o tinha batizado de “Príncipe”. E assim ele era: um “Príncipe”, no porte e no canto. Não gosto de gaiolas, sou contra prender os seres, ainda mais os que têm asas. Mas não queria fazer desfeita. Aceitei o canário. Com o tempo, adquiri afeto por ele, e ele por mim. Bastava eu chegar em casa que ele já começava a cantar. Ele passou a confiar em mim a tal ponto que comia alpiste em minha mão. O tempo passou, ele envelheceu. Decidi então que o Príncipe não podia morrer na gaiola sem conhecer o que é voar livre. Levei-o ao Parque do Flamengo, lugar amplo e arborizado. Quando abri a gaiola e o apanhei, pela primeira vez ele bicou minha mão. Parecia que ele adivinhava o que eu queria fazer: libertá-lo de mim. Ele não compreendia que aquele ato também me era doído ,porém nascia do meu amor por ele. Quando o soltei, ele mal conseguiu voar. Creio que ele compreendeu que suas asas estavam atrofiadas. Ele pousou na grama, olhou ao redor, parecendo admirado com o horizonte tão perto. Virei as costas e fui embora... Após dar alguns passos,  não resisti e virei para a “última olhada”. Ele não estava mais lá... Passados mais de 10 anos do fato, sempre que passo por ali inadvertidamente o procuro nos galhos, mesmo com a “objetiva razão” sempre a me dizer que eu nunca mais o verei...

Num domingo recente , porém, sai bem cedo para deambular . Andei muito, até que me vi no Parque do Flamengo. Sentei ao pé de uma amendoeira para apreciar aquela manhã linda. De repente, ouvi um canto estranho vindo dos galhos. Levantei a cabeça e vi um tipo de canário que nunca vi antes: parecia um pardal! Tinha a cor e o jeito de um pardal, mas cantava como um Príncipe. Seria um mestiço?... Só então me dei conta que havia sentado exatamente a poucos metros de onde havia libertado o Príncipe . Tentei segurar a imaginação, mas não consegui: rebelde, ela voou de mim e foi até ao passado, mais para recriar poeticamente os fatos do que para resignadamente aceitá-los . Assim, retornei mentalmente àquela manhã do passado e vi o que aconteceu quando fui embora: de um galho, uma pardal observava toda a cena. Vendo o Príncipe em perigo e perdido no meio da liberdade, ela desceu e pousou ao lado dele , levando-o consigo para ele aprender a ser livre . Juntos construíram ninho e engendraram uma nova raça.

 

“Poesia é voar fora da asa” (Manoel de Barros)

( imagem:  “Mulher e  pássaro sob o clarão da lua ”, de Miró)



                   ( "O belo pássaro decifrando o desconhecido a um casal apaixonado", de Miró )

                                                            ( flautim: Antônio Rocha)

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

sherazade e as linhas de fuga...

 

Havia uma aldeia onde um Sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor.  Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, o Sultão  resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele juntou as mulheres em uma ampla sala . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade. Quando o Sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida: a morte te espera...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o Sultão . No dia seguinte, Sherazade  prosseguiu com a história e logo a emendou com outra, com várias outras. O Sultão não conseguia ficar imune a esse poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos (o Sultão imaginava, ao contrário, que poderosa é a palavra que ameaça de morte) .  Naqueles momentos ao menos , o Sultão curava-se de si próprio,  desabrindo nele  um outro . Quando o dia amanhecia e Sherazade precisava interromper a narrativa, o Sultão agora lamentava  e até pedia:"Não vá se atrasar amanhã!".  Como Ariadne ,   Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, e a este estendia  como linha de fuga . A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia o poeta Manoel de Barros.  Sherazade simboliza a vida que se expressa    múltipla  nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros,  apesar dos Sultões de hoje que ameaçam calá-la:   “poesia é afloramento de falas” (Manoel de Barros).

 

(imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam em um mesmo fluxo, como um  rio inaprisionável :"Sou água que corre entre pedras, liberdade caça jeito”, Manoel de Barros )




terça-feira, 25 de agosto de 2020

o samurai espinosista

 

Em determinado momento da história do Japão, os samurais se desterritorializaram, pois somente assim poderiam continuar a ser samurais, homens livres, uma vez que os territórios passaram ao poder dos senhores feudais. Antes, cada samurai possuía um mestre, cujo poder vinha de sua destreza e maestria, além da sabedoria. Era subordinando-se a um mestre que um samurai aprendia a como ser um samurai, “mestre de si”. Essa subordinação nada tinha a ver com servilismo, pois a condição de servo é incompatível com a natureza do samurai.

Só se aprende a ser samurai com outro samurai que já o seja mais. Impossível se tornar samurai sem ter tido um mestre. Pois ser um samurai é sempre um aprendizado de como sê-lo. Saber usar a espada é somente parte do aprendizado. Primeiro, é preciso saber usar a mente. O maior dos mestres samurais também teve mestre. Além disso, todo samurai sabe que não houve um primeiro samurai que aprendeu a ser samurai do nada. Nunca houve um primeiro samurai que tenha sido o “mestre dos mestres”. O que sempre existiu, para um samurai,  é a necessidade de aprender a ser um samurai. O melhor samurai não é o que sabe mais, porém o que melhor aprendeu. O samurai é aquele que sabe achar um mestre: mesmo com a derrota ele aprende.

No Japão, os senhores feudais ganharam poder com a introdução da arma de fogo . Já os samurais consideravam que a arma de fogo não era digna dos homens  corajosos e nobres: apenas os medrosos se enfrentam de longe, à distância, e , covardemente, não dispensam oportunidades para atirar  pelas  costas. Além disso, para o samurai a boa espada é aquela que menos precisa ser desembainhada, pois antes dela deve prevalecer  a força da palavra e do caráter. Mas caso ela precise ser desembainhada, nunca o será para servir à covardia, ao mero poder pelo poder  e à vilania. E muito menos será usada para atingir pelas costas.

O filme “Depois da chuva” narra a história de um “ronin”, um samurai-andarilho que não se vende aos senhores feudais. Os senhores feudais tentam comprar  os samurais  oferecendo-lhes chefia de exércitos, querendo fazer deles generais fardados. Contudo, um general somente existe em razão de uma hierarquia de poderes, estando ele acima, e os comandados abaixo. Entre os samurais, porém, não existe acima, a não ser como lugar onde vive a honra, e não existe abaixo, senão como baixeza servil dos que se ajoelham, baixam a cabeça, dissimulam e se vendem.

Recusando-se a usar sua sabedoria e potência  a serviço  dos que desconhecem o que é nobreza e honra , os samurais se tornam nômades-andarilhos, seguem sem destino pelos caminhos, fiéis ao que são e aprenderam , não cedendo aos que põem em tudo um preço. Se sabem os últimos homens livres, tendo sido também os primeiros.


-cartaz original do filme:


 







domingo, 23 de agosto de 2020

resistência aos carcarás...

 

Meu apartamento fica em andar bem alto, o que me permite observar os pássaros. Se eu não fosse filósofo, certamente teria estudado etologia, pois gosto e aprendo muito com os pássaros, às vezes mais do que em livros. Aqui perto apareceu um imenso carcará, ave predadora muito astuta. Por ser lento e pesado, o carcará caça de forma ardilosa: ele vasculha os terraços atrás de ninhos à vista. Os pombos inexperientes às vezes constroem ninhos em lugares desprotegidos, mesmo num terraço. O carcará sabe disso e não perdoa...Ele não faz isso por maldade, é sua natureza. Já vi várias vezes o carcará se aproximando sorrateiramente de ninhos. Os pombos veem e nada podem fazer: ficam de longe apenas olhando , conformados com o destino triste de suas crias, cujo ninho o carcará transforma  em túmulo. Ontem, porém, vi a seguinte cena: um casal de bem-te-vis fez ninho numa árvore bem alta, quase  em frente à minha janela. Todos os dias bem cedo, inclusive, quem me acorda é o canto do bem-te-vi. Adoro acordar assim, mas alguns vizinhos , todos bolsonaristas, já pensaram até em treinar tiro ao alvo com os bem-te-vis, incomodados com seu canto livre e sem dono. Por diversas vezes, já defendi esse casal de bem-te-vis diante dessa gente predadora. Pois bem , ontem vi a seguinte cena : o casal de bem-te-vis enfrentou o carcará e o pôs para correr! Notei que se juntaram aos bem-te-vis alguns pardais. O carcará parecia invencível, até encontrar a resistência desses meus amigos ( creio que já posso chamá-los assim...). No fim , parecia que os pombos agradeciam, enquanto o casal de bem-te-vis pousava em uma antena , com alguns pardais logo abaixo. Quando perceberam que o perigo já era passado, de alguma forma que a gente não entende eles se cumprimentaram, indo cada um de volta ao ninho para cuidar do futuro ainda no ovo.

 

( aproveito para recomendar novamente este livro. É uma apresentação do pensamento de Espinosa para crianças, e fala de um pardal que Espinosa achou ferido e cuidou. Espinosa deu o seguinte nome ao pardal: “O Rebelde”)




- um dos melhores livros sobre etologia:



- este livro mostra a presença da etologia no pensamento de Espinosa. Em espanhol, "bestias" significa "animais" ( no sentido da etologia) , e não "bestas": 




- A música "Carcará" foi lançada em 1965, na voz de Maria Bethânia ( à época com 18 anos!). Na música, o "carcará" representava os militares que deram o golpe (em 64)  e já começavam a espalhar o terror...



evento

 

sábado, 22 de agosto de 2020

o muro

 

Anos atrás, após o fim de uma aula encerrando o semestre, uma aluna veio até mim e me entregou um papel com algo escrito,  e disse: “Professor, tudo o que você disse no curso de Introdução à Filosofia acho que tem a ver com essa história.” A história era anônima;  seu autor ,  um agente coletivo de enunciação . Interpreto aqui a história  e acrescento  perspectivas, mas a essência dela é o que segue.

Cinco doentes graves estavam numa enfermaria. A única comunicação  da enfermaria com o mundo  exterior era uma pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual  ficava um dos pacientes  a narrar o mundo lá de fora, mundo este que os outros pacientes não podiam ver. “Daqui vejo o mar , até sinto  sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava  aos outros doentes.  Apenas um  dizia  não conseguir sentir. Os que sentiam, recriavam  um mar na alma e “horizontavam-se” . No dia seguinte,  prosseguia o paciente-narrador: “Daqui  posso ver e ouvir crianças brincando numa pracinha . Vocês também conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente que não conseguia sentir a brisa também não conseguia ouvir as crianças . Os outros conseguiam, e algo    dentro deles brincava também e regenerava. Enfim, o paciente da janela  passava o dia a transpor em palavras a vida , de tal modo  que suas palavras viravam  remédio para quem as  ouvia: elas eram cura também.

Certo dia, porém , o paciente da janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele havia morrido. Só então os outros souberam que  o homem da janela era o mais doente entre eles.   Agora, cada um queria que a própria maca fosse colocada perto da janela, aquele lugar de abertura por onde entrava um ar , mas concordaram que para lá fosse o doente de  sensibilidade embotada. Só lhe fizeram uma exigência: continuar  as narrativas.  “ Farei melhor que o poeta que aqui estava !”, gabou-se. Então, perto da janela ele foi instalado.

Quando ele  olhou pela janela, porém, ficou mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Resignado, disse: “em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um  muro cinza... Um espesso   muro cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais sem vida  que existe : aquela que apenas repete o que está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro.

O muro cinza simboliza  tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes que nos estão fora e dentro, mesmo que ainda em esboço, virtualmente ( como o pássaro que Magritte libertou do ovo...). Há muros que a gente somente transpassa criando palavras cujo sentido    abra linhas de fuga  para a vida  com força libertária  mais potente do  que as  marretas.

 

“É preciso transver o mundo.” (Manoel de Barros).

( imagem: “ A clarividência”, de Magritte)







quarta-feira, 19 de agosto de 2020

imitagens

 

“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, “musa” significa “conhecimento que vem das artes”. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão, ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto. No mito, as Musas são filhas de Zeus , divindade ligada à justiça e à ética, com Mnemósyne, Deusa da Memória. Zeus uniu-se a Mnemósyne após uma guerra vencida por ele contra as forças da barbárie vinculadas à ignorância em seus variados aspectos. Dessa união entre a ética e a memória nasceram as Musas, divindades da cultura e do patrimônio. Assim, todo patrimônio cultural nasce do matrimônio gerador de uma ética da memória, de uma memória da ética. A cultura não existe apenas para relembrar algo que se deu no passado e passou. A cultura existe para fazer lembrar e dar a conhecer que se é possível vencer a barbárie da violência física e simbólica. Foi este acontecimento a origem da civilização , da educação e da cultura: a luta contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não consegue vencer. Pois não é uma ignorância em relação a não saber matemática ou “cartilhas”, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a arte, a natureza, enfim, a vida. Ontem e hoje, as forças da barbárie sempre ameaçam de destruição a cultura, porém nunca conseguirão destruir sua ideia geradora, enquanto mantivermos viva em nós ,coletivamente, a recordação daquilo que nos faz humanos, e não bestas acerebradas.

Segundo o poeta Manoel de Barros, todo ato criativo é uma “imitagem". A imitagem não é um tornar-se mera cópia de um Modelo ou Padrão. Ao contrário, a imitagem é a produção de uma diferença , como nos ensina a pequena menina em sua fabricação brincativa de um estilo . Em toda imitagem há uma aprendizagem não escolar de uma diferença que se afirma compondo-se, em liberdade. Em sua imitagem, é a menina, e não a escultura, a obra de maior arte. Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa, nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado: que vida é invenção , justiça e arte, e que isso nos dê forças ante a barbárie.

 

“Às vezes começa-se a brincar de pensar,

e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.”( Clarice Lispector)

 

"Minha poesia não tem função explicativa, só brincativa."(Manoel de Barros)



terça-feira, 18 de agosto de 2020

os monstros

 

Espinosa dizia que a pior fase da vida é a infância. Não por alguma coisa que seja intrínseca a essa fase da vida, mas por algo que lhe é extrínseco, que vem de fora. Pois é nessa fase da vida que mais dependemos da qualidade dos adultos que nos cercam. Qualidade é um valor que qualifica uma existência como nobre ou vil, libertária ou servil, educadora ou adestradora, questionadora ou fanática, que  se esforça para pôr de pé ou obriga a ficar de joelhos .  

A infância não é, em si, uma fase ruim da vida. Ela será ruim ou boa, de tristezas ou de alegrias , de retraimentos ou de emancipações ,de autoanulação ou de descoberta de si mesmo , enfim, de traumas ou de aberturas à vida e ao mundo, conforme a qualidade dos adultos que cercam a criança. Mais do que em pesquisas de opinião  , é no modo como trata suas crianças que uma sociedade revela sua natureza .

Que futuro esses vis governantes querem para as crianças ao reservarem mais recursos para as forças armadas do que para a educação?   A questão não são as armas, mas a mentalidade mórbida que está por trás delas, pois é essa mentalidade que é a pior arma : arma da ignorância , arma do fanatismo, enfim, arma apontada contra o   futuro e  inocência das crianças. Essa mentalidade doentia que cultua o fanatismo e a violência  também arma os monstros.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

a calça, pollock, manoel & maiakovski

 

Eu ainda cursava  o antigo segundo grau, vivíamos  o  fim da ditadura. Para não dar trabalho à minha mãe, certo dia resolvi lavar uma calça jeans minha que eu  sempre usava .Na época, existia apenas calça jeans escura, padrão. Minha  calça jeans era bem simples, muito usada pelos trabalhadores-operários ( por ser muito resistente) . Lavei a calça à mão ,  não tínhamos máquina de lavar. Para secá-la, usei o varal. Horas depois, devido ao vento, encontrei a calça caída com uma das pernas numa bacia . Recoloquei a calça no varal. Na manhã seguinte, vi que não era apenas água e sabão o líquido da bacia, havia também água sanitária, pois a perna que imergiu estava completamente desbotada! Ao ver o acontecido, “desabriu” em mim um olhar novo. Comandado por esse olhar subversivo,  mergulhei   a calça  inteira na bacia com água sanitária...

No dia seguinte,  ficou  pronta a obra: nunca antes vi uma calça parecida. Era  mais do que uma calça agora : era arte nascida da vida. A calça dizia o que não poderiam dizer palavras. O desbotado deixou o azul mais claro, parecendo um céu;  e as manchas brancas , nuvens . Um verso de Maiakovski diz: “Não serei homem, mas uma nuvem de calças!” Minha calça, ao contrário ,  parecia que se vestia de  nuvens...Ao pôr a calça, senti que vestia mais do que meu corpo , vestia também minha diferença , agora já não mais reprimida. Na minha inocência, porém,  imaginei que todos amariam minha re-invenção, e aprovariam me ver    vestindo criatividade. Mas quando saí à rua fui fuzilado pela ditadura do  olhar  dos fiscais do “mesmal”,   sempre vestidos  com o uniforme  de um viver homogeneizado. Esse uniforme os veste sobretudo por dentro. Tive que tomar ali a decisão mais importante da minha vida   : ou voltar para casa e vestir  calça e alma “mesmal e acostumada”,  ou afirmar minha diferença enfim vestida e conquistada. Tomei coragem, reuni forças e segui em frente.

Chegando ao colégio, um amigo do peito gostou daquele poema que inventei sob a forma de calça. Ele  quis saber como fiz  aquela subversão , para ele  fazer também a sua,   à sua maneira. E assim eu já não estava mais sozinho : diferenças agenciadas sempre podem mais do que sozinhas. Hoje sei que aquele  meu seguir em frente também me trouxe até Espinosa, Manoel, Deleuze...enfim, me trouxe  até a mim mesmo, para com eles continuar a seguir em frente.

 Como eu também pintava, as tintas coloridas que respingavam na calça  não a sujavam: acrescentavam cores, múltiplas cores. Anos depois, vi algo que me fez lembrar essa calça: um quadro de Pollock.

 

“ Se pudesse dizê-lo em palavras, não teria razão para pintar.” (Hopper)

 

( imagem: “Polos de azul” , de Pollock)



Segundo Deleuze, a tela nunca está totalmente  branca antes de o pintor começar a pintar, pois clichês ocupam virtualmente a tela, e querem que o pintor os reproduza. Quando o clichê deixa de ser apenas virtual e se torna atualidade na tela, isso pode agradar a opinião domesticada e acostumada , porém à arte é uma traição. Não é fácil vencer os clichês, pois eles também colonizam a cabeça sem que o colonizado saiba. Então, é preciso romper com toda forma de representação para chegar novamente ao caos inicial da sensação, pois todo mundo novo, já nos ensinava Hesíodo, nasce de um caos inaugural.





domingo, 16 de agosto de 2020

multitudo X massa-rebanho

 

Não se deve confundir a ideia de multitudo em Espinosa com as ideias de povo, massa ou nação. “Povo” é uma ideia ligada sobretudo a um território . Pode haver povo sem Estado, como os povos nômades, porém nunca existe povo sem um território ( mesmo que este seja um deserto). A ideia de “povoar”, por exemplo, vem de povo. “Massa” significa um aglomerado passivo que se une mediante algum comportamento padronizável que apaga a singularidade de cada um . Nunca a massa é definida em razão de um território, mas por conta de ela poder ser moldada ou manipulada, como “massa de manobra” ou “massa de consumidores”, por exemplo. “Nação” é a  ideia de um grupo cuja existência depende de um Estado , que passa a ser cultuado como uma espécie de Pastor, sendo a nação o seu rebanho. É por isso que os nômades são povos, porém não são nação, ao passo que  Israel já se considerava nação mesmo antes de ser povo em um território. Assim, não é certo chamar Bolsonaro de “populista” , pois sua prática é  de pastor que governa teológico-politicamente para transformar o povo em rebanho.

A multitudo não se explica por um território , mas por múltiplos e heterogêneos territórios que a compõem, territórios  de diferentes  minorias. Territórios não apenas físicos, como também existenciais, semióticos, culturais. As minorias reunidas não formam uma maioria padrão, pois o agenciamento de minorias  impede que delas se descole algum grupo com pretensão de ser padrão. A multitudo nada tem a ver com uma massa, uma vez que a multitudo não apaga a singularidade e sim a multiplica: multitudo é multiplicação de cada singularidade à enésima potência. A multitudo também nada tem a ver com uma nação enquanto rebanho de um Estado-Pastor. A multitudo , ao contrário, luta sempre para mostrar que sob a pele do Estado-Pastor sempre se escondem lobos.

Nessas pesquisas de opinião favoráveis ao genocida estão sendo ouvidas sobretudo a voz do rebanho-nação, que sempre diz “amém”, e a voz da massa (que não pensa) .  Nessas pesquisas, portanto, não ecoa a voz do povo e muito menos a voz da multitudo.


sábado, 15 de agosto de 2020

filosofia

 

A filosofia não é apenas livro, pois ela envolve algumas atividades que não são apenas do homem, mas da própria vida. Essas atividades são o conhecer ( base da Teoria do Conhecimento ou Epistemologia), o agir ( núcleo da Ética e da Moral) ,o sentir ( do qual nasce a Estética ) e o mais rico dos atos: o pensar.O pensar enseja uma disciplina da filosofia chamada Metafísica. Pensar, conhecer, agir e sentir: são esses os atos que fazem com que a filosofia não seja apenas teoria.A origem da filosofia não é a academia, a filosofia existe por causa desses atos, atos esses implicados com a própria vida .De todos esses atos, o mais identificado à filosofia é o pensar.O pensar não é um ato isolado, pois ele participa de todos os outros, como se fosse o coração de cada um deles. Por exemplo, muitos agem sem pensar, apenas obedecendo ou imitando; mas somente é libertário , ou criativo, o agir que nasce do pensar. Sentir é algo de que todos são capazes quando vivem os sentimentos, muitas vezes de forma irrefletida.Porém o artista lapida o sentimento até dele extrair o Afeto, fazendo do Afeto a matéria para um pensar que também se sente: o artista pensa com o som ( música) , com as cores ( pintura) ou com o próprio corpo ( teatro e dança).Conhecer é prática que caracteriza a ciência. Porém a ciência se torna mero instrumento do poder ou do mercado quando se afasta do pensar.A ciência que também pensa se torna cons-ciência , isto é, consciência humanista e planetária, no sentido de Bergson e Sartre.

Se alguém diz: “Sou pragmático, odeio filosofias”, também não escapa da filosofia, pois “Pragmatismo” e “Utilitarismo” são correntes da filosofia. E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, involuntariamente já responde a pergunta, pois indaga sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia. Enfim, é impossível alguém estar vivo e não se colocar questões como: “O que é a vida ?O que é o tempo? O que é a liberdade? O que é o amor? O que é a política? Quem eu sou?...” Quem formula tais perguntas, vislumbrando sentidos para elas, levanta temas da Metafísica, mesmo que nunca tenha lido livros de filosofia. Há ainda as crianças , que são filósofas /questionadoras por natureza, porém um sistema adestrador lhes corta as asas.

Os tiranos sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa descoberta do pensar , ou se já o descobriram, não o exerçam ( não importando a faculdade que tenham escolhido cursar). Descobrir o pensar é governar a si mesmo. E apenas os tolos e obedientes , os mortos em vida, dizem “amém” à “cicuta” que esses protofascistas querem impor a todos ( e não apenas aos filósofos e sociólogos).



sexta-feira, 14 de agosto de 2020

deleuze & manoel

 

tempo e aprendizado em proust

 

“Em busca do tempo perdido” é um livro sobre o mais necessário dos aprendizados.   Esse aprendizado, porém,  é tão necessário quanto difícil. Ele não é um aprendizado a ser feito por  crianças a serem educadas , ou por  adultos que pouco estudaram. O aprendizado de que trata o livro é um aprendizado que deve ser feito por “um homem de letras”, isto é, por alguém  que sabe usar as letras, as palavras, as teorias, mas que se dá conta que as letras já conhecidas e sabidas às vezes já não dizem nada,  nada ensinam. Esse aprendizado , portanto, não é sobre palavras , ele é um aprendizado sobre o tempo. Mas não se trata do tempo do relógio e  calendário. O tempo com o qual se aprende não se revela imediatamente. E é por isso que  “perdemos o tempo” mais do que o vivemos, enquanto ignorarmos seu aprendizado. Os “roteiros prontos” do viver acostumado nos fazem perder presentemente o tempo, sem  disso nos darmos conta. O primeiro aprendizado vem acompanhado da angústia em perceber  que  o “tempo que se perde” somente sabemos dele depois que ele passa.  O segundo aprendizado pode acontecer nas relações afetivas, pois elas  são projetos em comum de futuro. Quando esses projetos de futuro comum malogram e não vão em frente, tornam-se tempo perdido a pesar no passado de cada um. Essa descoberta do “tempo perdido” não se faz sem decepção e dor. É  por isso que o caminho da aprendizagem pode ser , no seu início, doloroso. Até que pode advir um terceiro  aprendizado : o do “tempo que se redescobre”. E aqui quem nos auxilia é a memória não ressentida . Essa  memória pode ser capaz de redescobrir no seio do tempo perdido, em meio ao passado , alguma coisa que se salva e nos resgata da dor  presente. Essa memória traz até mesmo alegrias, revelando  que no passado vivido  havia coisas que não vimos, talvez porque nos cegassem o ciúme , a insegurança ou o desejo de posse. Não podemos mudar o passado, porém podemos mudar seu sentido. A última etapa da aprendizagem é o “tempo redescoberto”. Esse tempo  é redescoberto agora, e não no passado. Ele não é o futuro que se planeja, ele é o traçar de um plano ou devir que começa agora, como antídoto à perda do tempo. No sentido bem amplo da palavra, e dito de maneira simples,  o tempo redescoberto é a descoberta da arte em seu sentido existencial, enquanto potência  (re)criadora da própria vida. O tempo redescoberto   nos ensina que redescobrir o tempo é  redescobrir a nós mesmos, pois no tempo que se perde somos nós mesmos que nos perdemos. Tempo que se perde  , tempo perdido  , tempo que se redescobre  e tempo redescoberto : esse é o caminho do aprendizado cujo mestre é o tempo.

“O aprender vem antes do ensinar.” (Deleuze)




 


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

livro de Cláudio Ulpiano

 A palavra “aventura” nasceu de um termo  latino que significa: “avançar , ir em frente”.   Quando pela frente há escuridão, as ideias são as melhores lanternas para termos em mãos, e avançar  agenciado leva mais longe do que avançar  sozinho.  O contrário de aventura é “desventura”: “infortúnio”.

De “aventura” nasceu “bem-aventurança”  e “venturoso” ( “estar pleno”). Espinosa emprega o termo “bem-aventurança” como sinônimo do avançar que conquistou o mais alto grau de confiança em sua potência libertária, e de vida está pleno . Bem-aventurança, segundo Espinosa, é a “Alegria Suprema”. É desse afeto que nasceu   a maior aventura de Espinosa  : o livro “Ética”, desabridor de caminhos   para se seguir em frente.

Os gregos eram autocentrados em sua pólis, e somente viajavam de ilha grega em ilha grega, costeando o Mediterrâneo. Porém  os romanos , sobretudo antes de Roma virar  império, sonhavam em aventurar-se : foi com eles que esse desejo de aventura nasceu, talvez sob inspiração de povos nômades que conheceram. Esse desejo surgiu não entre os senadores ou militares, mas entre os poetas e filósofos romanos. A aventura era um desejo de encontrar aquilo que os pensadores romanos chamavam de “Terra Nova”, também chamada de “Terra Incógnita”. A “Terra Nova” não estava em mapas e nem em mitos. A “Terra Nova” não era exatamente um Eldorado, pois o Eldorado era o lugar onde se imaginava haver  muito ouro, uma riqueza antiga. A riqueza a ser achada na Terra Nova era outra, ainda sem nome.  A Terra Nova não  se localizava em lugar determinado ao sul ou ao norte. O que se sabia é que nela as fronteiras não eram limites, eram horizontes.

“Aventura” é o que Deleuze & Guattari chamam de “linha de fuga” ou “desterritorialização”.  Linha de fuga não é fuga do mundo, linha de fuga é fazer fugir o que está  aprisionado e em desventura  , no mundo e em nós.

A Terra Nova não é Utopia, ela é Heterotopia: lugar de diferenças agenciadas. Essa Terra  não é como uma Pátria militar-falocrática,  essa Terra é  Mátria : Terra-Mãe ilimitada , chão aberto para aventuras a serem ousadas.

Quando se perguntava ao poeta-pensador latino  Lucrécio  onde se encontrava a  Terra Nova,   ele dizia que essa Terra  nunca será achada  se não for primeiro vislumbrada nos olhos que a buscam . E Proust parece dizer o mesmo  :  a verdadeira aventura, diz ele,  não consiste em “ viajar para ver lugares novos , mas ver com novos olhos ”.  

 

“Este livro é um exercício libertário da escrita em associação com um pensamento inovador.” (Sílvia Ulpiano, trecho da Apresentação do venturoso  livro de Cláudio).

“Poeta é quem possui visão fontana.” (Manoel de Barros)

“No incognoscível, é para lá que meu pensamento deseja se aventurar.” (Herman Melville)


 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

oficina manoelina

 

-  Oficina de Transfazer

A literatura é uma saúde.

Gilles Deleuze

 

Manoel de Barros define sua poesia como “Uma Oficina de Transfazer Natureza”[1].  Toda oficina é um lugar de “fazimentos”, de “inventar comportamento”[2]. Nessa Oficina há várias ferramentas, ferramentas simbólicas, semióticas, lúdicas. Queremos falar de uma ferramenta em especial. Manoel constrói e reconstrói inúmeras coisas com ela. Trata-se não de uma palavra, mas de uma “pré-palavra”: o prefixo “trans”. O pré-fixo é o que vem antes de algo fixo, pronto, fechado. “Fixo”, “acostumado”, é o significado que o uso enrijece: “significar reduz novos sonhos para as palavras”[3] .  Mais do que uma lógica, uma Oficina do Sentido: “Na ponta do meu lápis / Há apenas nascimento”.[4]

O “trans” é uma ferramenta da oficina poético-filosófica do artesão Manoel. Não é a gramática que pode explicar o emprego em Manoel de tal prefixo, apenas uma agramática o pode:

 

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana,

que  empoema  o sentido das palavras.

Aflora uma linguagem de defloramentos,

um  inauguramento  de falas.[5]

 

 No poema acima, Manoel nos ensina, brincativamente [6], a principal lição de sua Oficina:  o empoemar como atividade que aqui chamaremos de empoética. Esta é a hipótese que sustenta tudo o que queremos aqui dizer: toda a poesia de Manoel é uma empoética, e dessa empoética também fazem parte as entrevistas e mesmo sua correspondência.

Essa empoética também é expressa por outros meios sem ser a palavra, tal como se vê nos desenhos muito originais e singulares que o próprio poeta engenha. E mais: os livros nascem em cadernos artesanais que o poeta confecciona à mão. Também é parte de sua empoética essa sua artesania.          

Quando Manoel afirma que “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo"[7] , a ênfase deve ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta,  etiquetável, pertencente a um dono. Talvez seja esta a inocência empoética: sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre em “afloramentos”. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve".[8]

   Não se lê Manoel sem se empoemar. Todavia, o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? Mas se pode definir o tempo, o infinito, o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido? ... Alguém é capaz de fornecer uma resposta que encerre algo que é necessariamente da ordem de um horizontamento? Esse horizonte empoético não nos está apenas fora, ele começa a ser experimentado por dentro, desabrindo-nos: “O que desabre o ser é ver e ver-se”.[9] Empoemar-se é transfazer-se como se transfez o poeta: “Eu tentei me horizontar às andorinhas”.[10]

Nem todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e rima atinge essa condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do que rima e verso. Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto que faz Manoel de Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, para nos empoemar.  Transfeitas, as coisas e seres se tornam “forma em rascunho”[11]. Aquele que se transfaz, empoemando-se, “não cabe mais dentro dele. Outra pessoa desabre”[12].

Esse pré-fixo antecede a toda coisa fixa. Ele acompanha tanto o fazer quanto o ver, que assim se agenciam como transfazer e transver. Acreditamos que o transfazer e o transver empoéticos manoelinos se aproximam de uma originalíssima experiência de transmutação, na qual o sofrimento pode ser transfeito e transvisto:

 

A arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.[13]



[1] O guardador de águas, p. 20.

[2] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.

[3] Escritos em verbal de ave.

[4] Encontros: Manoel de Barros. Rio de Janeiro, Azougue, 2010(Org. Adalberto Müller), p. 135.

[5] “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, Guardador de águas, p. 62.

[6] Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2011.

[7] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.

 

[8] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.

[9] O guardador de águas.

[10] Memórias Inventadas - A Terceira Infância; Planeta, 2010.

[11] “Agroval”, Livro de pré-coisas, p. 22.

[12] Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 39.

[13] Livro Sobre Nada, p. 75.