quinta-feira, 16 de abril de 2020

os dois pães

Certa vez perguntaram a Diógenes Laércio qual o maior bem que lhe trouxe a filosofia. Diógenes respondeu repetindo as palavras que ouviu de seu mestre: “A filosofia me ensinou a conversar comigo mesmo.” Uma conversa nunca é um monólogo. Assim, para conversar consigo mesmo é preciso criar em si algo além do próprio ego. Nunca uma conversa pode acontecer entre inimigos, pois inimigos não conversam: atacam-se. Assim, a conversa consigo mesmo exige que nós não sejamos nossos próprios inimigos. Também os bajuladores não conversam: eles apenas se autoadulam querendo tirar proveito um do outro. Por isso, um narciso que se autoadula nunca conseguirá conversar consigo mesmo. Uma conversa não é apenas fala, ela também é escuta. Assim, aprende a conversar consigo mesmo quem se põe à escuta também daquilo que não consegue dizer a própria fala, como o inconsciente do corpo. Inclusive, um bom conversador, dizem, é quem sabe escutar. Conversa melhor consigo mesmo aquele que traz dentro de si vários. Fernando Pessoa, por exemplo, criou poesia da conversa com seus múltiplos heterônimos. Uma conversa consigo mesmo, portanto, nunca é uma conversa envolvendo apenas um eu e um outro, mas um nós heterogêneo e multifacetado. Uma conversa consigo mesmo nunca é um solilóquio ensimesmado, pois conversa autenticamente consigo mesmo quem conversa com a humanidade, com o cosmos, com os seres vivos, com o futuro e com o passado, mas sobretudo com o presente, procurando meios para mudá-lo. A conversa consigo mesmo nunca tem fim, nunca há uma verdade final a ser alcançada que nos ponha enfim mudos e "acostumados" ( "acostumado" , segundo Manoel de Barros, é o estado mental costumeiro dos acomodados) . Toda conversa visa produzir “companhia”. Essa palavra, assim como “companheiro”, originam-se do termo latino “compane”. De “pane” vem “panificação”, pois “pane” é “pão”. “Companheiro” : “aquele com o qual dividimos o pão.” Há o pão que alimenta o corpo. Quando este falta, vem a fome. Maria Antonieta, zombando da fome do povo, disse: “Não têm pão? Que comam brioches!”. Então, os explorados perceberam que precisavam ser companheiros e dividir o pão da justiça, para assim lutarem contra a tirania que lhes impunha submissão e fome. Mas há também o pão que alimenta o espírito : a falta desse pão mata o que em nós é pensante . Uma conversa consigo mesmo visa produzir em nós mesmos um “devir-companheiro”: somente sendo para nós mesmos companhia podemos aprender a ser companheiro dos outros, para matar a fome em nós dos dois pães.




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