domingo, 2 de dezembro de 2018

devir-borboleta


Na Grécia, “travessia” se escrevia assim: “eudaimonia”. Essa palavra também pode ser traduzida por “felicidade” ( chamada por Espinosa de “beatitude”). “Eudaimonia” significa: “estar na companhia de um bom Daimon “. Só o bom Daimon auxilia na travessia.  O Daimon era representado com asas de borboleta, e não com asas de pássaro. Pois os pássaros já nascem com asas, já as asas da borboleta somente nascem após a metamorfose de um ser que rasteja: a lagarta. O caminho que leva da lagarta à borboleta não é reto e nem está sinalizado, tampouco o ensinam cartilhas. Entre a lagarta e a borboleta  há uma metamorfose.  Uma metamorfose nada tem a ver com uma mera transformação. “Trans-formar” significa: “passar de uma realidade menos desenvolvida a uma mais desenvolvida dentro de uma mesma forma”, como a criança que se desenvolve em adulto dentro da forma humana. “Metamorfose”, ao contrário, significa: “conquistar  uma realidade nova que não estava contida na antiga forma”. A metamorfose ensina que a antiga forma nada mais era do que prisão que nos acostumava a ser lagarta. Manoel de Barros chama de “deslimite” a esse devir-borboleta. Deleuze intitula “linha de fuga”. Linha de fuga não é fugir de algo, mas fazer fugir de uma forma uma potência que ali era sufocada. A mais necessária das travessias não se faz sobre caminhos já prontos e asfaltados, mas na conquista de uma nova realidade que não existe antes de ser inventada.
               
“Borboleta é uma cor que avoa”(Manoel de Barros)




                                 (cena do filme "A dupla vida de Veronique", do diretor Kieslowski)




BORBOLETAS 
(Manoel de Barros)

“Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens
e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta -
Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras
do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças
do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidades para a paz do
que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do
ponto de vista de uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul”.

***   ***   ***


“No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no jardim, um canteiro.

No canteiro, uma violeta.

E, sobre ela, o dia inteiro,

a asa de uma borboleta."

(Cecília Meireles) 

           
                                                 
“Parecia que ia morrendo

e revivia.

E girava asas imensas,

maiores do que a noite e o dia.

Rouca, delirante, aguerrida,

pisando  a morte e os maus agouros,

‘olé!’ –  dizia."


( A METAMORFOSE DE UMA BORBOLETA, Cecília

 Meireles)





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