sábado, 24 de novembro de 2018

a escova do poeta


No poema “Escova”,  Manoel de Barros  diz ter visto, quando criança, dois homens sentados no chão  "escovando osso" . No início, diz o poeta, “achei que eles eram loucos” . Mas ele olhou bem e viu que não podiam ser loucos aqueles homens. Louco ,  o mais perigoso,  é  quem  quer impor aos outros o seu   “mesmal” . O “mesmal” é a doença de quem imagina que seu modo de viver é o único normal. Aqueles homens não podiam ser loucos, pois pareciam ver a novidade onde todos veem o igual. No escovar deles  também havia uma  artesania semelhante à de Espinosa a polir lentes com cuidado:  eles queriam livrar o osso da craca e poeira que nele grudaram .  O poeta descobriu então que aqueles homens eram arqueólogos. Eles queriam ressuscitar no osso o mundo no qual ele foi parte de um esqueleto sob músculo e pele. E mais do que isso: eles desejavam reviver  o sentido que estava no osso , pois nada faz sentido sozinho: o osso foi  parte de  um esqueleto  que era   parte de um ser vivente,  igualmente parte singular de um mundo que ainda vivia , como sentido a descobrir, no osso. E os próprios arqueólogos eram partes de um conhecer  explorador  que ressignificava o sentido daquele osso metamorfoseando-o em signo de um mundo.  Sem esse ressignificar explorador  o conhecimento se torna apenas   adestramento para os significados que o poder nos quer impor. Para eles  o osso era mais do que osso: era também o fragmento de uma história , a nossa história,  que a vida  ainda está a escrever, com ideias e corpos. Enquanto viver em nós aquele impulso inventor de mundos ,  não seremos o epílogo de tal história: a faremos perseverar   como a mais necessária  lição que devemos ensinar   às crianças, para que a vida pensante não se extinga.   Ao ver os arqueólogos ,   o poeta compreendeu qual seria seu destino: escovar as palavras, retirar delas a idiotia, a ignorância, o preconceito, o clichê  e as banalidades que nelas colocaram as mentes obtusas,  de tal maneira que seria também uma “ecologia mental” o que o poeta faria  ao escovar das palavras tais sujeiras e craca. Ao escovar as palavras, o poeta  não acha  “Verdades” , “Ordens” ou “Mandamentos”; ele acha  a poesia como sentido primeiro, não conformista, das coisas : “A poesia está guardada nas palavras, é tudo o que sei” (Manoel de Barros).  





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