sábado, 7 de setembro de 2024

A origem do sentido

 

A palavra “semântica” vem do grego “sema”, que também costuma ser traduzido por “signo” ou “sinal”. Signo ou sinal é tudo aquilo cuja presença aponta ou sinaliza para outra coisa . Por exemplo, a palavra “casa” é o signo que “representa” ( re-apresenta) a casa concreta.

Na Grécia antiga quando alguém morria o corpo era cremado. Mas o fogo não consumia tudo. E antes que ele se extinguisse totalmente, as últimas chamas eram apagadas com água e vinho. A água para apagar o fogo, e o vinho para co-memorar, criar memória, daquela vida. Morte não é apenas despedida, também é celebrar que houve aquela vida.

Ao fim do rito, restavam apenas os fragmentos dos ossos alvos se destacando sobre o fundo das cinzas. Esses fragmentos eram recolhidos e guardados numa pequena urna, que então era plantada no seio da terra. Para os Gregos , colocar a urna no seio da terra era um processo semelhante ao plantar a semente , para que dela brote outra vida. Para os Gregos, só a vida é absoluta, nunca a morte. “Ab-soluto”: o que não é soluto, o que não se dissolve.

Depois , era confeccionada uma pequena tabuleta com o nome da pessoa ali plantada e um epíteto , isto é, uma pequena frase semelhante a um verso que expressasse e traduzisse a vida daquele cujo nome estava escrito na tabuleta, que então era afixada sobre a  terra onde a urna foi plantada.

A tabuleta “sinalizava” e dava a conhecer uma vida, agora ausente. A tabuleta era uma presença que sinalizava uma ausência. Os gregos chamavam essa tabuleta de “sema”, pois ela era um signo que representava uma vida ausente.

Isso talvez ajude a compreender a enigmática frase  de Platão na Carta Sete, na qual o filósofo afirma que a filosofia  não pode ser escrita, a não ser secundariamente. Pois a filosofia nasce de uma experiência originária do filósofo com  a Ideia que o torna filósofo, sem a mediação de signos. O texto escrito é o relato dessa experiência ou experimentação transcendental. A filosofia é expressão da alma e corpo vivos expressos sobretudo pela palavra viva , e não pela palavra escrita como sinal que aponta para uma ausência, para uma morte.

A palavra “sema” é prima da “palavra “soma”, que em grego significa “corpo” ( como em “psicossomático”).Assim o sema é o corpo da palavra ( ou significante) , ao passo que a alma da palavra é seu sentido, que  aponta ou sinaliza para o ser ausente que a palavra re-apresenta.

Mas acontece algo diferente com a palavra do poeta, pois a palavra poética potencializa ainda mais o sentido. A palavra poética não re-apresenta algo ausente , ela faz com que se torne presente nela uma existência que se torna absoluta.

“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que a  seja”, explica-se o poeta Manoel de Barros. A palavra poética abre-se para o poeta amorosamente, para que a poesia que o poeta escreve não seja apenas re-apresentação do mundo, mas criação de outros mundos cujo sentido não se esgota apenas na palavra. É por isso que o poeta também diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, pois poesia não é representação do mundo dado , mas criação de outros mundos possíveis.  O poeta também diz que “escreve com o corpo”, o corpo vivo que não é apenas carne e osso, mas também espírito tangível que também é fogo. Não como aquele fogo que destroi e consome, como o fogo do ritual funerário, mas sim fogo que aquece e ilumina, chama que é da vida. Fogo assim é o Princípio ou Arqué de tudo, ensina Heráclito.


Este texto tem como principal referência a Introdução escrita por Jean-Pierre Vernant para este livro:





 

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