segunda-feira, 9 de setembro de 2024

os dois desertos

 

No texto A origem da geometria[1],  Michel Serres nos fala da origem egípcia da geometria e sua influência sobre a filosofia grega. Tales e Platão dão o testemunho  do diálogo inaugural entre a Grécia  e o Egito, entre a  pólis e a paisagem desértica, entre a escola filosófica e o plano abstrato e liso[2] do deserto, enfim, entre o pensamento filosófico e uma parte do mundo na qual África e Ásia fazem vizinhança.

É certo que todo monoteísmo é filho do deserto. Porém, não são o mesmo deserto o de  Moisés e Maomé e o que viu nascer a geometria em torno das pirâmides. O deserto teológico-político é mais hostil, pedregoso , carente de oásis...Neste tipo de deserto, o medo desperta a imaginação reativa que, fomentada pela palavra de ordem dos profetas,  passa a delirar oásis no além.  Já o deserto que viu nascer a geometria lembra um oceano branco e aberto , espelho na terra do amplo céu.

O deserto teológico-político é sobrecodificado pelas “estrias da Lei”, ao passo que o deserto liso  é espaço nomádico: a presença de um sol sem nuvens projetando as  sombras das pirâmides sobre a tela plana do deserto, como uma lousa sem bordas,  criou um espaço abstrato propício à desterritorialização do pensamento em relação a todo empírico dado, para a mente então se reterritorializar sobre si mesma  e criar sua linguagem geométrica solar, apolínia. Não é uma linguagem fruto do medo e que exige  obediência a profetas, é uma linguagem que emancipa o pensamento e o ilumina com a ciência.

Ecos dessa geometria lisa criada pela própria natureza chega até Espinosa, que a reinventa. Pois em Espinosa  a Natureza não está contida ou limitada pelas formas geométricas-apolínias, como a interpretou Platão; ao contrário, são as formas geométricas que estão contidas e são explicadas pela Potência Incontível , “Dionisíaca”, da Natureza.

 

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[1] Capitulo do livro Hermes : uma filosofia das ciências.

[2] “Lisa” , segundo Deleuze & Guattari, é toda realidade que é fluxo, devir; já “estriada” significa uma realidade codificada, estratificada, hierarquizada.




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