domingo, 29 de setembro de 2024

O ponto de interrogação

 

                         A EDUCAÇÃO COMO ACERVO DE IDEIAS [1]

 

 



 

 

Em qualquer lugar onde o homem experimentou se pôr de pé,

ele próprio se tornou o centro do grande círculo,

e o começo de um caminho.

(Clarice Lispector)

 

 

Segundo Fernando Pessoa, no início dos tempos o homem andava de quatro, como um cão. Sua coluna cervical era paralela ao chão, parecendo um travessão [ - ]. E sua cabeça estava voltada sempre para baixo, a procurar por sobras e restos. 

O que pôs o ser humano  de pé não foram os pés. O ser humano  foi elevando-se quando seus olhos se desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no céu infinito acima dos interesses rasteiros[2] .E foi assim que nasceu o desejo: em latim, “desiderare”, “ir às estrelas”. De certa maneira , o Eros Filosófico, enquanto impulso afetivo-pensante expresso no termo  grego “philo”, é a intensificação e potencialização de um desejo assim. “Ir às estrelas”, mas sem deixar de pôr os pés na Terra[3].



(De desiderare vem “sideral” : “lugar das estrelas”. Esse sideral poético-metafísico que põe de pé também parece ser  o tema da pintura “Noite estrelada sobre o Ródano”, de Van Gogh. Acrescentei os versos do poeta Keats)


De pé, vista de lado, a coluna cervical assemelha-se a um ponto de interrogação [ ? ], pois é o interrogar que pôs e põe o homem de pé (o interesse estreito o coloca de quatro, enquanto o medo o põe de joelhos).

Não por acaso, o ponto de interrogação é o sinal que expressa a disciplina  mais filosófica das disciplinas filosóficas: a Metafísica. De Aristóteles a Sartre, passando por Espinosa, Nietzsche , Heidegger e Deleuze, a metafísica é esse impulso para pôr-se de pé diante da Existência.

“Cervical” e “acervo” vem do termo latino “cérvix”. Um autêntico “acervo” não é feito de  coisas mortas ,  inertes. A coluna cervical  , por exemplo, não é apenas o que sustenta a cabeça. Pois a  coluna cervical também é o que nos põe de pé e serve de elo entre o cérebro e o restante do corpo : é atravessando a coluna cervical    que as ideias e desejos nascidos no pensamento se tornam força ,  alcançam nossas mãos e pernas,  traduzindo-se em ação sobre o mundo.

 É por isso que o poeta-pensador Fernando Pessoa nos lembra  que a coluna cervical  tem a forma de um ponto de interrogação. Segundo o poeta, não são  exatamente os pés e pernas que põem o ser humano de pé, e sim sua capacidade de  elevar-se mediante as interrogações que coloca para si mesmo. Pois é isto que põe o homem de pé: sua capacidade de pôr questões. Assim  como a coluna cervical, um acervo existe para manter de pé  as ideias que nos fazem seres pensantes.

Enquanto acervo de uma biblioteca , os livros são fontes para sustentar e pôr de pé as ideias que educam e transformam. Filosofia, literatura, arte, cultura e  educação são expressões desse sentido originário de acervo, pois são essas produções que  mantêm o ser humano ,  a sociedade democrática e o pensar crítico/criativo  de pé.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo profº Elton Luiz. Imagem : “Poesia”, de Haroldo de Campos

[2] Esse Infinito é o que Espinosa, por exemplo,  chama de Natureza.

[3] Ou naquilo que Deleuze, inspirando-se em Espinosa,  chama de Imanência.






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