No último
dia de um curso de Introdução à Filosofia que eu ministrava, uma
aluna que nunca faltava me entregou um
papel e disse : “Professor, acho que tudo que
você falou no curso tem a ver com esta história”.
O texto não
estava assinado, parecendo ser uma
daquelas história cuja autoria é da própria Vida. A história dizia mais ou menos o seguinte:
Cinco pacientes estavam numa
enfermaria. A única comunicação da enfermaria com o mundo exterior era uma
pequena janela, uma abertura para luz
e ar entrarem como antídotos benfazejos ao sofrimento daquele
lugar.
Mas perto dessa janela cabia apenas uma maca, na
qual ficava um dos pacientes. Esse paciente
passava o dia a narrar o mundo que via através da janela, ele não mantinha
a janela como privilégio egóico apenas para si.
“Vejo daqui um
mar azul de amplo horizontes, vocês
conseguem sentir sua brisa?” Apenas um dos pacientes dizia não conseguir
sentir. Os outros três que a sentiam “horizontavam-se” recriando um mar dentro da
alma.
No outro dia, o
paciente-narrador prosseguia: “Vejo
crianças brincando numa pracinha, vocês conseguem ouvir o riso delas?”
Os três que sentiram a brisa também
conseguiam ouvir as crianças, de tal
modo que algo dentro deles brincava também e se regenerava. O quarto paciente nada ouvia, parecendo ter a
sensibilidade fechada.
E assim se
seguiam os dias: com as palavras do paciente-narrador sendo mais do que
palavras, sendo remédio.
Mas houve um dia
em que ele estava mudo e de olhos fechados. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele não mais
vivia. Ela disse que o paciente da janela era o mais doente dentre eles ( embora ele , como um estoico, nunca se queixasse...).
Havia agora um
espaço vazio sob a janela. Combinou-se que o paciente com a sensibilidade
embotada poderia ocupar tal lugar, desde que ele continuasse as narrativas. Então, perto da janela esse paciente foi instalado.
Porém, ele olhava pela janela e nada dizia. Indagado pelos outros porque nada narrava, ele
respondeu : “Aqui diante da janela não há mar, crianças ou pracinha; há apenas
um espesso muro cinza”. Ele se limitava
a repetir: “Há apenas um espesso muro cinza...”. Era verdade: sempre houve
aquele muro.
Sua palavra se
tornou a mais pobre que há: aquela que , resignadamente, apenas descreve o que
está dado.
O muro cinza
simboliza tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes externos
e internos , mesmo que ainda em esboço ( como o pássaro que Magritte libertou
do ovo...).
O primeiro
paciente usou as palavras para criar uma
linha de fuga e transver o muro com sua
“visão fontana”, como ensina Manoel de Barros. Palavras assim são mais potentes
do que marretas...
“Nenhum de nós é ‘O’ médico, somos companheiros de enfermaria.”
(Sêneca)
"O que é a
ficção? O que é essa verdade que tem a face da mentira?"
(Dante)
( “ A clarividência”, de Magritte)
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