Quando entrou em contato pela primeira vez com a cultura do homem branco, o
pensador indígena Krenak dizia que a
ideia mais incompreensível para ele era de que o mundo estaria condenado a um fim, a um “Juízo Final” que
salvaria os “eleitos” de uma religião e
destruiria quem não tivesse a mesma visão de mundo, a mesma religião. E o
mais estranho: essa visão vingativa-destruidora
era a base de uma religião que se dizia do Amor.
Essa visão de que a terra, a
Mãe-Terra, teria um dia fim parecia legitimar que o homem branco já começasse a destruí-la desde agora com uma niilista pulsão de morte, derrubando suas florestas,
poluindo seus mares e rios, enfim,
ameaçando de extinção os povos da floresta.
Mas os povos das florestas têm um
antídoto que os protege. Esse antídoto
não está no cacique , o “chefe político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse
antídoto está naquele que é chamado de
“pessoa coletiva”.
Nos povos da floresta , a “pessoa
coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a
“pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da
comunidade.
Somente sendo uma “pessoa coletiva”
se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem
cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que
potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo.
A “pessoa coletiva” é o poeta da
comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando
um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”.
O poeta da tribo expressa um
poder diferente daquele que exerce o
cacique, o poeta promove curas para
enfermidades que o pajé não consegue
curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua
guerra é a resistência por intermédio da
palavra que não deixa morrer um mundo : o mundo dos povos da floresta.
A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de
enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de
falas”, tal como aflora na pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos
poetas da nossa tribo : "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos
primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.” (Manoel de
Barros)
Segue um trecho do livro de Krenak:
"Como os povos originários do
Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? (...)Vi as diferentes
manobras que os nossos antepassados fizeram
e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a
resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas
'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas
visões sobre o mundo" (p. 28).
(Obs: fiz essa postagem tempos atrás,
mas essa querela do carnaval sobre “fim do mundo” e “arrebatamento/salvação” , alardeada
pelos
idólatras do inelegível , me fez lembrar
desse livro de Krenak)
A queda-d'água ergueu-se à minha frente.
De repente...
tudo ficou de pé eternamente,
a floresta, a pedra, o vento vertical do abismo.
E o senhor que anima esse ambiente
ficou comigo...
Eu sou potente e contenho a visão
da queda erguida d'água-vida tão contente e são.
Havia ali a presença toda sã
de minha irmã e coisa mais que azul.
A lua, lua, lua, lua, lua
sobre um pinheiro do sul.
( “Queda d’água” /
letra-poema de Caetano Veloso).
Nenhum comentário:
Postar um comentário