quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

para adiar o fim do mundo...

 

Quando entrou em contato pela  primeira vez com a cultura do homem branco, o pensador indígena  Krenak dizia que a ideia mais incompreensível para ele era de que o mundo estaria  condenado a um fim, a um “Juízo Final” que salvaria os  “eleitos” de uma religião   e destruiria quem não tivesse a mesma visão de mundo, a mesma religião.   E o mais estranho:  essa visão vingativa-destruidora era a base de uma religião que se dizia do Amor.

Essa visão de que a terra, a Mãe-Terra, teria um dia fim parecia legitimar que o homem branco  já começasse a destruí-la   desde agora com uma niilista pulsão de morte, derrubando suas florestas, poluindo seus mares e rios, enfim,  ameaçando de extinção os povos da floresta.

Mas os povos das florestas têm um antídoto que os protege.  Esse antídoto não está no cacique , o “chefe político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse antídoto está naquele que é chamado de   “pessoa coletiva”.

Nos povos da floresta , a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade.

Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo.

A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”.

O poeta da tribo expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo : o mundo dos povos da floresta.

 A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo : "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.” (Manoel de Barros)

 

Segue um trecho do livro de Krenak:

 

"Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar  com o seu mundo? (...)Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram  e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas 'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo" (p. 28).

 

(Obs: fiz essa postagem tempos atrás, mas essa querela do carnaval sobre “fim do mundo” e “arrebatamento/salvação” , alardeada   pelos  idólatras do inelegível , me fez lembrar desse livro de Krenak)







A queda-d'água ergueu-se à minha frente.
De repente...
tudo ficou de pé eternamente,
a floresta, a pedra, o vento vertical do abismo.

E o senhor que anima esse ambiente
ficou comigo...
Eu sou potente e contenho a visão
da queda erguida d'água-vida tão contente e são.

Havia ali a presença toda sã
de minha irmã e coisa mais que azul.
A lua, lua, lua, lua, lua
sobre um pinheiro do sul.

 

( “Queda d’água” / letra-poema de Caetano Veloso).


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