quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Espinosa: fortaleza, firmeza e generosidade

 

Em uma belíssima passagem de sua Ética[1], Espinosa nos fala acerca das ações da mente. A mente não apenas padece, sofre paixões, ela também é capaz de  agir, tornando-se ativa. A mente ativa cultiva um afeto : a fortaleza.

Da fortaleza se originam dois outros afetos  da mente de grande importância para Espinosa : a firmeza e a generosidade. Esses afetos ativos , como todo afeto ativo, vêm acompanhados de amor e  alegria, nunca de ódio ou tristeza.

A firmeza diz respeito à relação de nossa mente conosco, enquanto a generosidade se endereça ao outro. Firmeza e generosidade, portanto, são afetos complementares: a prática de um implica na prática do outro, ambos expressões da fortaleza.

A firmeza é o oposto da volubilidade e da  inconstância, as quais Espinosa define com uma imagem: a dos “ventos contrários”. Quando ventos contrários sopram no meio do oceano, o barco é agitado de lá para cá  , ficando sem rumo, perdido... Dentro da alma inconstante  sopram os ventos contrários das paixões tristes.

A firmeza  é a mão guiando o leme na direção que se deseja ir, e não na direção que sopra o vento. Não por acaso, na língua banto “fortaleza” é “quilombo”, espaço no qual Zumbi punha o leme com firmeza na direção da luta pela  liberdade, apesar da contrariedade dos donos da Casagrande e seus capitães do mato.

A generosidade é uma espécie de modéstia. Não se deve confundir modéstia  com humildade. A humildade é uma forma de tristeza nascida da baixa estima de si frente aos outros, ao passo que a modéstia , apoiada  na firmeza em relação a si, é uma forma de aptidão à amizade, isto é, de apreço pelo outro. Apreciar o outro não significa diminuir a si:  é essa lição ética  que aprende e pratica, com amor e alegria, o generoso-modesto.

Quem é generoso o é por uma ação de sua mente, e não pela expectativa de receber alguma ação de reconhecimento por parte daquele em relação ao qual se é generoso.  Pois esperar  receber uma ação é padecimento. E generosidade não é padecimento, é ação. Quem padece não é livre; somente quem age o é. Assim, a generosidade é um dos frutos da mente que se faz livre, fazendo livre igualmente o corpo.

O vaidoso e  o invejoso, ao contrário, são autoindulgentes na  apreciação de   si mesmos   e rígidos  na apreciação dos outros. Por essa razão, são inaptos à amizade. Além disso, ser firme consigo não significa ser rígido, e ser generoso com os outros nada tem a ver com ser indulgente acriticamente .

Na esfera política, essa amizade ética de que fala Espinosa  recebe o nome de “companheirismo”. Essa palavra vem de  “com-pane”. Em latim, “pane” é “pão”. Companheiros: aqueles que aprendem a dividir o pão, com firmeza e generosidade.

 Não apenas o pão literal  que alimenta o corpo; pois também são pães, pães que alimentam a alma,  a justiça, o conhecimento e a dignidade.



[1] Ética ,  Terceira Parte, proposição 59 , escólio.

 




Sobre os "ventos contrários", partilho aqui uma belíssima aula do professor e filósofo Cláudio Ulpiano , de quem tive a alegria de ter sido aluno-amigo ( partilharei do Acervo Claudio Ulpiano , para quem quiser ver mais aulas do inesquecível mestre):

https://acervoclaudioulpiano.wordpress.com/2017/09/03/pensamento-e-liberdade-em-espinosa/

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