Em uma belíssima passagem de sua
Ética[1],
Espinosa nos fala acerca das ações da mente. A mente não apenas padece, sofre
paixões, ela também é capaz de agir, tornando-se
ativa. A mente ativa cultiva um afeto : a fortaleza.
Da fortaleza se originam dois outros
afetos da mente de grande importância para
Espinosa : a firmeza e a generosidade. Esses afetos ativos , como todo afeto
ativo, vêm acompanhados de amor e alegria, nunca de ódio ou tristeza.
A firmeza diz respeito à relação de
nossa mente conosco, enquanto a generosidade se endereça ao outro. Firmeza e
generosidade, portanto, são afetos complementares: a prática de um implica na
prática do outro, ambos expressões da fortaleza.
A firmeza é o oposto da volubilidade
e da inconstância, as quais Espinosa
define com uma imagem: a dos “ventos contrários”. Quando ventos contrários
sopram no meio do oceano, o barco é agitado de lá para cá , ficando sem rumo, perdido... Dentro da alma
inconstante sopram os ventos contrários
das paixões tristes.
A firmeza é a mão guiando o leme na direção que se
deseja ir, e não na direção que sopra o vento. Não por acaso, na língua banto “fortaleza”
é “quilombo”, espaço no qual Zumbi punha o leme com firmeza na direção da luta
pela liberdade, apesar da contrariedade dos
donos da Casagrande e seus capitães do mato.
A generosidade é uma espécie de
modéstia. Não se deve confundir modéstia com humildade. A humildade é uma forma de
tristeza nascida da baixa estima de si frente aos outros, ao passo que a modéstia
, apoiada na firmeza em relação a si, é
uma forma de aptidão à amizade, isto é, de apreço pelo outro. Apreciar o outro
não significa diminuir a si: é essa
lição ética que aprende e pratica, com
amor e alegria, o generoso-modesto.
Quem é generoso o é por uma ação de
sua mente, e não pela expectativa de receber alguma ação de reconhecimento por
parte daquele em relação ao qual se é generoso. Pois esperar receber uma ação é padecimento. E generosidade
não é padecimento, é ação. Quem padece não é livre; somente quem age o é.
Assim, a generosidade é um dos frutos da mente que se faz livre, fazendo livre igualmente
o corpo.
O vaidoso e o invejoso, ao contrário, são autoindulgentes
na apreciação de si
mesmos e rígidos na apreciação dos outros. Por essa razão, são
inaptos à amizade. Além disso, ser firme consigo não significa ser rígido, e
ser generoso com os outros nada tem a ver com ser indulgente acriticamente .
Na esfera política, essa amizade ética
de que fala Espinosa recebe o nome de “companheirismo”.
Essa palavra vem de “com-pane”. Em
latim, “pane” é “pão”. Companheiros: aqueles que aprendem a dividir o pão, com
firmeza e generosidade.
Não apenas o pão literal que alimenta o corpo; pois também são pães, pães
que alimentam a alma, a justiça, o
conhecimento e a dignidade.
[1] Ética
, Terceira Parte, proposição 59 , escólio.
Sobre os
"ventos contrários", partilho aqui uma belíssima aula do professor e
filósofo Cláudio Ulpiano , de quem tive a alegria de ter sido aluno-amigo (
partilharei do Acervo Claudio Ulpiano , para quem quiser ver mais aulas do
inesquecível mestre):
https://acervoclaudioulpiano.wordpress.com/2017/09/03/pensamento-e-liberdade-em-espinosa/
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