quinta-feira, 22 de setembro de 2022

devir-árvore

 

À primavera  (começa hoje)  e ao Dia da Árvore (comemorado ontem):

 

Espinosa ensina que a filosofia não é uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, a pluralidade e potência  da  vida. Espinosa afirma   que a vida nunca termina, ela se metamorfoseia.

Certa vez , conversando  isso com uma amiga, partilhei com   ela como eu gostaria que fosse a metamorfose que me fizesse permanecer na vida.

Não ambiciono outra vida no “Além”. Queria continuar numa vida que vicejasse aqui no seio da Mãe-Terra, feito a vida verdejante de uma árvore.

Amo livro e árvores. O livro é para a  árvore o mesmo que a borboleta é para a  lagarta: o  papel que um dia foi árvore , no livro ele ganha as asas da palavra.

Contudo, para quem escreve um livro a continuidade conquistada é apenas “letral”, ao passo que  metamorfosear-se  numa árvore é fazer parte do  livro da Vida.

Como amo viver, espero que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer”  ( “desacontencer” é um verbo criado por Manoel de Barros ). Mas quando ele vier, não desejo  ir para debaixo do chão. Prefiro que envolva meu corpo o fogo de que fala  Heráclito , fogo-arquetípico da Vida Imortal.

Porém  não quero ser reduzido a cinzas inertes , e sim me tornar sumo e adubo para  ser lançado nas raízes de uma amendoeira ,  ser sorvido por ela e sê-la. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto.

A amendoeira é prima das oliveiras, e dizem que veio clandestina do Oriente  como semente  incrustada na madeira de uma  nau portuguesa que atravessou  oceanos. Nas terras sábias do Oriente, onde a poeta  Sherazade  venceu   o autoritário  Sultão, a amendoeira era conhecida como “a árvore mais resistente”. 

Mas não quero ser lançado nas raízes de uma  amendoeira vivendo em terreno cercado com dono e proprietário, nem quero que seja  uma amendoeira perto de estradas por onde passam carros neuróticos e apressados. Também prefiro que não seja  uma amendoeira inalcançável e isolada.

Queria então que fosse meu  novo corpo  uma amendoeira que fizesse parte da Floresta da Tijuca, um espaço amplo sem cercados, onde há o Cristo do Corcovado     de braços abertos monumentados  para abraçar quem luta do lado certo, tenha ou não religião.

Não queria que fosse     uma  amendoeira perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma  amendoeira que somente poderá ser encontrada  por aqueles que amam descobrir caminhos novos: e que a estes a amendoeira possa oferecer sombra e  proteção .

Entrarei pelas raízes e atravessarei o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos  até alcançar  a verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de bem-te-vis e  pardais, para quem sabe me tornar um deles e pôr para correr os Carcarás...

E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas: que a lápide  seja  apenas a amendoeira florescendo em maio, mês em que nasci.

 

(imagem: “Amendoeira em flor”/ Van Gogh)








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