quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

sherazade

 

Havia uma aldeia onde um Sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor.  Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, o Sultão  resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele juntou as mulheres numa ampla sala de seu palácio . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade. Quando o Sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida: a morte te espera...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o Sultão . Na noite  seguinte, Sherazade  prosseguiu com a história e logo a emendou com outra, com várias outras. O Sultão estava sendo vencido por  um poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos. O Sultão imaginava, ao contrário, que poderosa era  a palavra que  censura e ameaça de morte outras  palavras dela diferentes.  Mas a palavra de Sherazade , potente e múltipla, dava   voz e vida  às falas coletivas abafadas pelo autoritário Sultão. Como Ariadne ,   Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, para com esse fio  bordar  linhas de fuga para a vida ameaçada. Era  a palavra de  Sherazade que desfazia a escuridão da noite e fazia amanhecer o dia . A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia o poeta Manoel de Barros.  Sherazade simboliza a vida que se expressa   nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros, nascida que é de uma voz  múltipla e libertária, apesar dos Sultões de ontem e de hoje que ameaçam calá-la.

 

  “Poesia é afloramento de falas.” (Manoel de Barros).

 

  (imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam num mesmo fluxo, como um  rio inaprisionável. Esse fluxo lembra as águas dos versos de Manoel que coloquei acompanhando a imagem )









 



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