sábado, 23 de janeiro de 2021

desfantasmar...

 

O poeta e filósofo  Lucrécio, mestre de Espinosa,  dizia que tudo é  feito de átomos e vazio. Os corpos que vemos são átomos reunidos. Dos corpos se desprendem átomos muito sutis que  mantêm a forma do corpo do qual se desprenderam. É graças a esses átomos sutis  que podemos perceber os corpos. Nunca percebemos diretamente os corpos, percebemos apenas os átomos sutis que eles emitem, e que guardam semelhança com a fonte de onde provieram. Lucrécio dá o seguinte nome a esses   átomos sutis : “simulacro”.  Os simulacros são imagens que  simulam a fonte de onde vieram. Quando a gente se lembra de alguém que vimos ontem, evocamos dentro de nossa mente um simulacro da pessoa, não a própria pessoa. Se a gente sonha com ela, vemos o simulacro dela, não a fonte do simulacro.

Porém, acontece de os simulacros às vezes se tornarem “independentes” dos corpos de onde vieram, como se adquirissem “vida” própria. É assim que, dos simulacros, podem  nascer os “fantasmas”. Os fantasmas são simulacros que levam a mente a imaginá-los tão ou mais reais do que suas fontes . Quando os fantasmas dominam a mente, adquirem vida própria enfraquecendo o poder de pensar da mente, que assim se aliena negando a ciência, a filosofia e a própria natureza.

São três os principais tipos de fantasmas: os oníricos, os eróticos e os teológicos. Os fantasmas oníricos são os do sonho. Muitos imaginam que os sonhos são mensageiros do “além”, e que eles seriam uma realidade mais verdadeira do que a que vemos com os olhos despertos. Isso vem da ignorância acerca da verdadeira fonte desses fantasmas, que são os simulacros que os corpos emitem. Os fantasmas eróticos  nascem das fantasias sexuais narcísicas  que substituem o amor real por prazeres egoicos  , tornando-se sintoma de  uma impotência de amar enfraquecedora da natureza  compósita de eros, o amor . Os fantasmas teológicos surgem quando se imagina Deus  como um tirano sentado num trono   nos ameaçando com castigos  ou dando “prêmios” aos obedientes . As intolerâncias  religiosas , os delírios negacionistas , as fantasias  narcísicas e as superstições  da ignorância  vêm desses três fantasmas ou da combinação deles ( por trás dos  moralistas fantasmas teológico-políticos sempre há um fantasma erótico reprimido...).

Nele mesmo, o fantasma não tem vida. A vida que ele adquire vem da  imaginação alienada que ignora  como é a natureza, seus corpos e simulacros. Lucrécio define a filosofia como a prática de “desfantasmar” a nós mesmos e ao mundo , para assim reencontrarmos a natureza e nos libertamos dos fantasmas que geram superstição, ignorância e servidão.

Os átomos são capazes de um “desvio” que  subverte o “mesmal”  das linhas retas. Lucrécio chama de “clinâmen” a esse desvio libertário, expressão em nós de um pensar que redescobre novos caminhos.  Múltipla e heterogênea, a natureza se parece mais  com um poema a ser recitado do que com ordens de um tirano a querer nos impor  obediência e medo.

 (neste livro  há um   artigo sobre Lucrécio)




                    ("Os átomos todos dançam🎼..." verso da música de Caetano)


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