No antigo primário, quase todo dia
nos obrigavam a cantar o Hino Nacional. Era uma ordem dos milicos da ditadura. Alguns
professores simpatizantes do autoritarismo
adoravam esse ritual . A gente não
gostava desses professores autoritários, eles não tinham poder sobre nós em
sala de aula (refiro-me ao poder que nasce da admiração : um poder que não
domina, liberta). Mas durante o hino eles
tinham enfim poder sobre nós , um poder repressivo, e isso parecia preencher certo vazio psicoafetivo neles. Eu achava
muito estranho cantar algo que eu não entendia, até pensava que o Hino era outra
língua ( como o tal “inglês” que a elite e os milicos idolatravam...). Hoje sei
que não entendiam a letra 99% dos
adultos que nos obrigavam a cantar aquela língua
morta . O inspetor cantava e , ao mesmo tempo, intimidava com
olhar policialesco quem não estava
cantando. O rosto dele parecia o de um inquisidor
que nos vigiava por fora para ver se
havia dentro de nós algum subversivo escondido.
O Hino Nacional nasceu como “marcha militar” sem letra. A letra foi criada apenas em 1909 pelo poeta
parnasiano Osório Duque-Estrada, vencedor do concurso para a escolha da letra, um concurso com júri simpatizante dos militares . Em geral, o
parnasianismo esconde a banalidade de suas ideias atrás de um malabarismo verbal
meramente formal, que impressiona
exatamente porque não é entendido : o poema se quer objeto de culto , e não meio para nos fazer
pensar . Assim é a tal “Pátria a[r]mada” do hino: somente a cultua, teológico-politicamente,
quem nada sabe de empatia e amor genuíno. O hino se diz o “brado do povo”,
porém desse “povo” estavam ausentes os negros, as mulheres , os índios.
Quando cresci e passei a
entender a letra do Hino Nacional , compreendi que ela não narra fatos históricos, e sim versões elaboradas
pela elite militarista
fingindo encarnar a “voz do povo”. Aliás, o povo é o grande ausente dos fatos
históricos que o hino pomposamente
retrata em língua que o povo não fala e nem entende, como o latim da missa. Depois fiquei impressionado quando ouvi os
hinos de outras nações , sobretudo daquelas cuja independência foi obra real do povo. Quando é popular, a poesia nasce
primeiro cantada, com as cores da fala popular, e somente depois passa a viver
na palavra escrita. Nesses hinos, a letra é escrita imitando a fala popular. Os acontecimentos cantados
o povo se lembra deles, reconhecendo-se
como o autor de sua história. Hinos assim o povo canta abraçado e lado a lado ( pois é lutando lado a lado
que venceram os tiranos) . Muito
diferente são as marchas militares sisudas que exigem formação rígida, obrigando-nos a olhar para a bandeira como soldados batendo continência para um general. Era esta a impressão que me
causava o hino lá na escola: como um rebanho traçado com régua rígida , nos
queriam uns atrás dos outros numa obediente
fila , não
lado a lado.
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