quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

pátria a[r]mada

 

No antigo primário, quase todo dia nos obrigavam a cantar o Hino Nacional. Era uma ordem dos milicos da ditadura. Alguns professores  simpatizantes do autoritarismo  adoravam esse ritual . A gente não gostava desses professores autoritários, eles não tinham poder sobre nós em sala de aula (refiro-me ao poder que nasce da admiração : um poder que não domina, liberta). Mas durante o hino  eles tinham enfim poder sobre nós , um poder repressivo, e isso parecia preencher  certo vazio psicoafetivo neles. Eu achava muito estranho cantar algo que eu não entendia, até pensava que o Hino era outra língua ( como o tal “inglês” que a elite e os milicos idolatravam...). Hoje sei que não entendiam a letra  99% dos adultos que nos obrigavam a cantar aquela   língua  morta  . O inspetor  cantava e , ao mesmo tempo, intimidava   com olhar policialesco  quem não estava cantando. O rosto dele  parecia o de um inquisidor  que nos vigiava por fora para ver se havia dentro de nós algum subversivo escondido.

O Hino Nacional  nasceu como   “marcha militar” sem  letra. A letra  foi criada apenas em 1909 pelo poeta parnasiano Osório Duque-Estrada, vencedor do  concurso para a escolha  da letra, um concurso com  júri simpatizante dos militares . Em geral, o parnasianismo esconde a banalidade de suas ideias atrás de um malabarismo verbal meramente formal,  que impressiona exatamente porque não é entendido : o poema se quer  objeto de culto , e não meio para nos fazer pensar  .  Assim é a tal “Pátria a[r]mada”  do hino: somente a cultua, teológico-politicamente,  quem  nada sabe de empatia e  amor genuíno. O hino se diz o “brado do povo”, porém desse “povo” estavam ausentes os negros, as mulheres , os índios.

Quando cresci e passei a entender  a  letra do Hino Nacional ,  compreendi que ela  não narra fatos históricos, e sim versões elaboradas pela   elite  militarista fingindo encarnar a “voz do povo”. Aliás, o povo é o grande ausente dos fatos históricos que o hino   pomposamente retrata em língua que o povo não fala e nem entende, como o latim da missa.  Depois fiquei impressionado quando ouvi os hinos de outras nações , sobretudo daquelas cuja independência foi obra real  do povo. Quando é popular, a poesia nasce primeiro cantada, com as cores da fala popular, e somente depois passa a viver na palavra escrita.  Nesses hinos, a  letra é escrita  imitando a fala popular. Os acontecimentos cantados   o povo se lembra deles, reconhecendo-se como o autor de sua história. Hinos assim o povo   canta  abraçado e lado a lado ( pois é lutando  lado a lado  que venceram os tiranos) .  Muito diferente são as marchas militares sisudas que exigem formação rígida,  obrigando-nos    a olhar  para a bandeira  como  soldados batendo continência  para um general. Era esta a impressão que me causava o hino lá na escola: como um rebanho traçado com régua rígida , nos queriam uns atrás dos outros  numa obediente fila ,    não lado a lado.




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