sábado, 6 de junho de 2020

o espaço das ruas


Os gregos inventaram a “ágora” , a praça pública, como espaço-símbolo  da democracia.  “Ágora”  vem de “agon” : “conflito”  ou “disputa”. Na ágora aconteciam disputas  travadas com palavras.  Os romanos, por sua vez,  inventaram as ruas. Não como espaço político,  mas como meio de travessia   para além dos muros das cidades:  as ruas atravessavam  espaços livres e  não povoados. Impérios  e cidades desaparecem destruídos por guerras ou catástrofes: com eles, desaparecem também as praças. Mas as ruas que atravessam campos e espaços abertos nunca desaparecem totalmente : se ninguém mais passa por elas, as ruas se integram à natureza , tornando-se trilhas em esboço que somente os andarilhos nômades sabem achar.
A Revolução Francesa se inspirou no ideário da praça como espaço de poder a se contrapor aos templos da intolerância religiosa  e aos castelos dos senhores feudais. Surgem então os “parlamentos”: lugar onde “parla-se” (ou  “fala-se”) .  Radicalizando ainda mais a ideia de democracia, Espinosa dizia que mais importante do que a praça é a rua , sobretudo como espaço comum para abrigar a multiplicidade reunida para defender a liberdade   e  se opor  a toda forma de tirania . As ruas vão além do “parla-se”, pois nelas sobretudo  age-se.  Essa multiplicidade unida nunca cabe totalmente no espaço centrípeto das praças, pois somente no espaço centrífugo das ruas cabe o existir em movimento da multiplicidade agenciada , cuja potência excede o poder de governos e Estados: enquanto a  força destes é a da mera polícia,   a potência da multiplicidade  é o desejo comum por justiça, igualdade , liberdade  , democracia, vida. Da praça nasceu o parlamento para se opor aos templos e castelos. Porém quando o próprio parlamento se torna sucursal do templo teológico-político e de   mentalidades medievais encasteladas, somente as ruas podem nos restituir a liberdade que nos roubaram as urnas algemadas.  As praças simbolizam o centro das cidades, ao passo que as ruas  são rizomas que alcançam também as periferias e  margens, conectando aqueles a quem o poder centralizador exclui e marginaliza. A rua assim compreendida será sempre  o espaço múltiplo e aberto daqueles que defendem a democracia,  sendo muito maior    que esse infame conluio entre templo  , quarteis e milícias.

"A rua põe sentido em mim"(Manoel de Barros)



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