sexta-feira, 19 de junho de 2020

hoje: aniversário de chico buarque


Antes de ouvir Chico,eu o li. Antes de ouvi-lo como música,eu o li como poesia:como poesia que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola, numa  época na qual ainda pairava sobre nós a ditadura.  Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos. Eu já  sabia ler livros : livros de história, de física, de química, de geografia e até livros sobre literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver o intelecto. Foi a poesia presente na canção popular  que, quando criança,  me fez aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por descobrir.
Li pela primeira vez Chico  em uma aula de língua portuguesa dada no antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que,na parte de interpretação de textos,  empregavam os “parnasianos”, a nossa querida professora  resolveu adotar um livro heterodoxo, plural :o livro apresentava  as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção . Tais festivais ainda eram recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram. Por isso, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro  fazia o que Foucault chama de micropolítica da resistência.
Quando li  “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é fugir de um território habitual,costumeiro, ordinário.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha,incluindo as cartilhas que tentam codificar nossa percepção, palavras  e maneiras de pensar e agir. 
Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : eu me reterritorializava em um território composto de   sensações e afetos que não eram apenas pessoais.
 Essa desterritorialização  me  ampliava para além dos muros da escola: me lançava no mundo,  me inseria no cosmos. Foi a partir dali que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam nos adestrar.
Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo.













Chico Buarque na voz de Elis ( esta música é a expressão daquilo que Lacan chama de "amoródio"):

Outra de Chico & Elis:

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