sábado, 27 de junho de 2020

o dia claro

“Hades” era, ao mesmo tempo, o nome de uma divindade e  de um lugar: o Hades. Esse lugar ficava abaixo da superfície,  porém ainda dentro de Gaia , a Mãe-Terra, como uma espécie de útero  às avessas: enquanto o útero gera vida, o Hades serve de abrigo a quem morreu. Os homens são injustos com o deus Hades, não reconhecendo que  ele é o último a nos dar abrigo quando ninguém mais o pode dar. O Hades não é a mesma coisa que o “inferno”, pois para o Hades não iam apenas os maus, ia  todo mundo que morria. Na Grécia antiga,  quando alguém  morria a sombra se descolava do corpo e ficava sozinha. O corpo era incinerado nas cerimônias fúnebres, mas como  queimar uma sombra? Era a sombra então que era recebida no Hades, juntando-se a milhares de sombras que ali já estavam. Isto explica em parte a escuridão do Hades: mais do que física, sua escuridão era por ali   só haver  sombras. Quando estamos vivos, às vezes nos esquecemos de alguma coisa. Vem então nossa memória e nos ajuda a recordar. “Recordar” é : “re-cordis”, “trazer de novo ao coração" ( cordis , em latim). Mas quando a pessoa morria e se tornava sombra, acontecia um esquecimento mais profundo: ela se esquecia de si própria. Pois é isto a morte para os gregos: Esquecimento Absoluto. Não o esquecimento dos outros em relação a nós, mas esquecimento de nós mesmos em relação a nós mesmos, não nos lembrando mais o que é a vida. Morrer, para os gregos, é esquecer de si. Certa vez ,o poeta  Orfeu foi ao Hades, porém sem ter falecido. Ele foi em busca de sua Eurídice que havia morrido . “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Pneuma” e “Psiquê”. Simbolicamente, isso significa que a alma do poeta, tomada de grande dor e tristeza,  havia "morrido", parando de cantar. Parar de cantar é, para o poeta, morrer. Mas somente ele poderia resgatar sua Alma-Eurídice, pois somente ele tinha a arte de fazer viver de novo  almas. Chegando ao Hades, isto é, à região escura que também estava no interior  dele mesmo, Orfeu reúne forças e começa a cantar. As canções de Orfeu  eram simples, porém ricamente  elaboradas, cheias de vida. Eram canções talvez semelhantes às que Cartola cantava...Ao ouvirem Orfeu, as sombras foram novamente se lembrando de si mesmas:  tornaram-se novamente almas, focos de luz,  cujo corpo era a arte trazendo-as à vida. Por um instante, fez-se no Hades um dia claro.

“Descanse tranquilo onde cantam, os maus não cantam.” (Schiller)

“A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los." (Deleuze)







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