domingo, 14 de junho de 2020

espinosa & manoel: guardadores de águas...


Muito se discute  acerca do que Espinosa chama exatamente de “Deus”. Longe de mim querer dar uma resposta à questão. Desejo apenas apresentar uma perspectiva deliberadamente  simples, poética. Como diz Deleuze, “mais importante do que o pensamento é o que dá a pensar.” O pensamento se apoia em conceitos, já o pensar é como o artesão que fabrica ideias . Deleuze então complementa: “Mais importante do que o filósofo é o poeta”, este artesão de ideias esculpidas na própria sensação que o corpo também sente.
Logo no início de sua “Ética” , Espinosa não emprega o termo “Deus”, ele evoca a  ideia do  “Absolutamente Infinito”. A palavra “absoluto” significa : “ab-soluto”, “o que não é solúvel”, ou seja, “o que não se dissolve”. Então, ele quer nos fazer pensar-sentir-experimentar a ideia de que existe uma realidade que não se dissolve, e que nós mesmos somos expressões ou maneiras de ser dessa realidade absoluta. Não apenas nossa alma , enquanto pensa, é uma expressão singular dessa realidade absoluta , também o é nosso corpo, enquanto age.
Então, Espinosa não dá um nome específico a essa realidade absoluta, ele tenta nos fazer pensar-sentir-experimentar sua ideia, e só a compreenderemos  de fato se nos apreendermos como partes singulares dela, aqui e agora e não no “além”. “Ideia” não é a mesma coisa que  “nome”. “Nome” designa algo, já a “ideia” nos faz pensar em algo, mesmo que esse algo não possa ser designado por um nome específico. Como as crianças,  “poetas gostam de usar palavras que ainda não têm idioma”, ensina Manoel de Barros.
O nome “Deus” é  possuidor de significados que geram disputas teológico-políticas entre os homens, dividindo-os em religiões muitas vezes em constante  guerra . Já o “Absolutamente Infinito” ninguém pode querer ser o dono dele e nem falar em seu nome, pois somente se torna  expressão  do Absolutamente Infinito quem ama pensar, sentir e viver a potência libertária das  ideias, agindo para que os obscurantistas , sempre inimigos das ideias, não as dissolvam.
Assim,  usando aqui como metáfora poética a ideia da água, na aurora de sua “Ética” é como se Espinosa falasse  da simples e pura ideia da água: a “natureza naturante” . Essa água absoluta   não está só no oceano, na chuva e no  rio , ela está também no suor e na lágrima , bem como na água da placenta que nos envolveu e alimentou no corpo da mãe. Todas as águas são uma expressão singular  ou maneira  de ser dela , enquanto “natureza naturada” ou fluxo da Vida.






Quando as crianças são muito pequenas, têm uma capacidade de compreensão menor do que a de um adulto. Porém, as crianças têm alguma capacidade de compreensão , e é por isso que, dependendo da idade, elas conseguem compreender alguma coisa do que seja o universo, a geração da vida, preceitos éticos, etc. Mas tudo vai depender de como esses conhecimentos serão passados para as crianças, sobretudo no que diz respeito à linguagem a ser empregada para alcançar o nível de compreensão delas. Têm maior sucesso com as crianças as narrativas que possuam figuras , cor, imaginação. Mas para um adulto produzir tais narrativas, é preciso que ele conheça o conceito científico ou filosófico que servirão de base a tais narrativas, porém adaptando tais conceitos à narrativa afim a crianças. Mas a própria humanidade teve sua infância, lá no começo da história. E foi em meio a essa infância que a humanidade “descobriu” o alfabeto, isto é , a palavra escrita. Antes que a humanidade se tornasse “adulta” com o advento da filosofia, ela colocou no papel relatos escritos que expressavam mais a infantilidade de sua mente do que a verdade daquilo do qual ela queria tratar. Com o tempo, esses relatos escritos se tornaram objeto de culto, e deles se afastou o espírito que ali ainda balbuciava. “Espírito” , para Espinosa, não tem conotação religiosa, mas filosófica. “Spiritus” é a tradução do “Pneuma” grego, significando “sopro úmido” ou “sopro da vida”. Assim, diz Espinosa, a mera letra no papel é somente terra seca, infértil, se nela não soprar o sopro vivo do espírito, que é o sentido. A letra no papel às vezes se torna objeto formal de culto, porém o espírito jamais pode ser objeto de culto, pois a atividade de pensar, expressão maior do espírito, nunca é apenas formal: ela é sempre potência criadora de sentido, e nunca está apenas na letra e no papel, pois ela se abre ao infinito, ao universo, ao mundo, à sociedade, para assim compreender e agir no aqui e agora.

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