Muito se discute acerca do que Espinosa chama exatamente de
“Deus”. Longe de mim querer dar uma resposta à questão. Desejo apenas
apresentar uma perspectiva deliberadamente simples, poética. Como diz Deleuze, “mais
importante do que o pensamento é o que dá a pensar.” O pensamento se apoia em
conceitos, já o pensar é como o artesão que fabrica ideias . Deleuze então
complementa: “Mais importante do que o filósofo é o poeta”, este artesão de
ideias esculpidas na própria sensação que o corpo também sente.
Logo no início de sua “Ética” ,
Espinosa não emprega o termo “Deus”, ele evoca a ideia do “Absolutamente Infinito”. A palavra “absoluto”
significa : “ab-soluto”, “o que não é solúvel”, ou seja, “o que não se
dissolve”. Então, ele quer nos fazer pensar-sentir-experimentar a ideia de que
existe uma realidade que não se dissolve, e que nós mesmos somos expressões ou
maneiras de ser dessa realidade absoluta. Não apenas nossa alma , enquanto pensa,
é uma expressão singular dessa realidade absoluta , também o é nosso corpo, enquanto
age.
Então, Espinosa não dá um nome específico
a essa realidade absoluta, ele tenta nos fazer pensar-sentir-experimentar sua
ideia, e só a compreenderemos de fato se
nos apreendermos como partes singulares dela, aqui e agora e não no “além”. “Ideia”
não é a mesma coisa que “nome”. “Nome”
designa algo, já a “ideia” nos faz pensar em algo, mesmo que esse algo não
possa ser designado por um nome específico. Como as crianças, “poetas gostam de usar palavras que ainda não
têm idioma”, ensina Manoel de Barros.
O nome “Deus” é possuidor de significados que geram disputas
teológico-políticas entre os homens, dividindo-os em religiões muitas vezes em constante
guerra . Já o “Absolutamente Infinito”
ninguém pode querer ser o dono dele e nem falar em seu nome, pois somente se
torna expressão do Absolutamente Infinito quem ama pensar,
sentir e viver a potência libertária das ideias, agindo para que os obscurantistas , sempre
inimigos das ideias, não as dissolvam.
Assim, usando aqui como metáfora poética a ideia da
água, na aurora de sua “Ética” é como se Espinosa falasse da simples e pura ideia da água: a “natureza
naturante” . Essa água absoluta não
está só no oceano, na chuva e no rio ,
ela está também no suor e na lágrima , bem como na água da placenta que nos
envolveu e alimentou no corpo da mãe. Todas as águas são uma expressão singular
ou maneira de ser dela , enquanto “natureza naturada” ou
fluxo da Vida.
Quando as crianças são muito
pequenas, têm uma capacidade de compreensão menor do que a de um adulto. Porém,
as crianças têm alguma capacidade de compreensão , e é por isso que, dependendo
da idade, elas conseguem compreender alguma coisa do que seja o universo, a
geração da vida, preceitos éticos, etc. Mas tudo vai depender de como esses
conhecimentos serão passados para as crianças, sobretudo no que diz respeito à
linguagem a ser empregada para alcançar o nível de compreensão delas. Têm maior
sucesso com as crianças as narrativas que possuam figuras , cor, imaginação.
Mas para um adulto produzir tais narrativas, é preciso que ele conheça o conceito
científico ou filosófico que servirão de base a tais narrativas, porém
adaptando tais conceitos à narrativa afim a crianças. Mas a própria humanidade
teve sua infância, lá no começo da história. E foi em meio a essa infância que
a humanidade “descobriu” o alfabeto, isto é , a palavra escrita. Antes que a
humanidade se tornasse “adulta” com o advento da filosofia, ela colocou no
papel relatos escritos que expressavam mais a infantilidade de sua mente do que
a verdade daquilo do qual ela queria tratar. Com o tempo, esses relatos
escritos se tornaram objeto de culto, e deles se afastou o espírito que ali
ainda balbuciava. “Espírito” , para Espinosa, não tem conotação religiosa, mas
filosófica. “Spiritus” é a tradução do “Pneuma” grego, significando “sopro
úmido” ou “sopro da vida”. Assim, diz Espinosa, a mera letra no papel é somente
terra seca, infértil, se nela não soprar o sopro vivo do espírito, que é o
sentido. A letra no papel às vezes se torna objeto formal de culto, porém o
espírito jamais pode ser objeto de culto, pois a atividade de pensar, expressão
maior do espírito, nunca é apenas formal: ela é sempre potência criadora de
sentido, e nunca está apenas na letra e no papel, pois ela se abre ao infinito,
ao universo, ao mundo, à sociedade, para assim compreender e agir no aqui e
agora.
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