sábado, 18 de maio de 2024

tangentes e linhas de fuga

 

Manoel de Barros define sua poesia como uma “Estética da Ordinariedade”.  Mas a “ordinariedade” de que fala Manoel nada tem a ver com o   “ordinário” das coisas ética e politicamente infames. 

Curiosamente , a  ideia de “ordinário”  vem da matemática, assim como  a noção de “extraordinário”. Na matemática, os “pontos ordinários”  de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que , como massas destituídas de singularidade, ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que os três “pontos extraordinários” ou “singulares” localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: os que ocupam os extremos da linha.

Mas  a relação  entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Tal figura geométrica parece destituída de pontos extraordinários ou singulares. Geralmente se  costuma dizer que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?

Porém  o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma “tangente”.

“Tangente” significa: “ o que toca ou afeta”. Na matemática, a tangente é uma linha que , vinda de fora, toca o círculo, compartilhando com ele um mesmo ponto, abrindo-o.

Na vida há tangentes também: uma tangente pode ser qualquer coisa que, como “linha de fuga”,  potencialize o sentir e  o pensar, desabrindo-os. Em Manoel de Barros, “desabrir” é abrir-se para horizontes , externos e internos.

“Linha de fuga” não é fugir de algo, mas fazer fugir algo que estava aprisionado : ao desfiar  o uniforme de louco que o poder normalizador lhe punha, Arthur Bispo do Rosário queria encontrar o fio que o uniforme aprisionava , para assim libertar o fio da forma acostumada, libertando assim a si mesmo,  e com o fio livre  bordar sua história nunca antes contada.

Um fio que liberta e cura  se torna linha de fuga e tangente para bordar Potências expressivas que também se tornam remédios  para a saúde da mente.

 Toda tangente abre o que está fechado, deixando entrar luz, ideia  ou ar, sobretudo o “ar do possível” para a gente não sufocar , como dizia Foucault . 

No encontro da tangente  da poesia com o círculo de nossa vida , este é tocado e desabre, o suficiente para um pouco de  vida de novo entrar. 




 (Aberto, o “Manto” de Bispo do Rosário lembra as asas de uma borboleta nascida da tangente curativa , cuidativa e emancipadora  da arte. Foto de Walter Firmo)





 


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