domingo, 26 de maio de 2024

Espinosa e a medicina mentis

 

Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault,  em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica.  Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. Foucault argumenta que  essa conduta muda radicalmente a partir de Leibniz,  não obstante Espinosa e Leibniz  serem contemporâneos ( Espinosa era apenas um pouco mais velho que Leibniz).A partir de Leibniz, fazer filosofia será identificado a escrever livros, artigos; dar aula na academia, fazer palestras, acumular Títulos. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma. Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade, requer  sobretudo coragem .E disto a própria vida de Espinosa  dá o testemunho. Decerto que não faltou amor à Verdade a Sócrates ou Platão, e nisto Leibniz os segue. Mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a Verdade pede. Há uma dimensão clínica nessa Verdade, pois toda cura começa na coragem. Coragem não para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com  a saúde (salut).

Não se trata , portanto, da noção de “verdade” dogmática ou associada à clássica definição da adequação entre a ideia e seu objeto. A verdade de que fala Foucault é adequação sem dúvida, mas adequação entre o que pensamos e nossa conduta. Não é uma verdade enquanto forma , é uma verdade enquanto potência: um devir-verdade que nada tem a ver com as “Verdades Dogmáticas” sem devir.

Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina mentis, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem apenas pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curandorismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo.Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse vir tal salut.Procedendo assim, a alma está sempre a depender de outra coisa para ser si mesma e exercer sua virtude, que é a compreensão, o pensar.Todavia, não há como a alma delegar essa virtude e permanecer alma, assim como não há como ela, em vida, delegar sua existência a outra coisa e ainda permanecer viva. Na verdade, a virtude de pensar não pode ser delegada, pois ela constitui a existência da alma. No entanto, ela pode ser enfraquecida, entristecida, e isto é o que ocorre quando a alma adoece.

Ao perceber que o corpo está doente, a alma age visando a cura dele produzindo um método. Se for a alma a doente, o inverso não se aplica, pois o corpo é incapaz de perceber uma doença na alma.Se o corpo está bem alimentado, saudável, ele está na plena posse de sua virtude, que é agir. Perceber é uma virtude que depende da alma, e não do corpo.Mas como alma e corpo são um só, é abstrata a ideia de que um possa estar são e o outro doente. Esta hipótese foi aventada apenas para introduzir a seguinte questão: se a alma estiver doente, impotente, como pode ela perceber em si mesma tal impotência?Como poderia ela, estando doente, isto é, encontrando-se incapacitada para compreender, compreender justamente que ela não compreende?Como poderia ela emitir um juízo acerca de si mesma se ela se acha incapacitada para emitir juízos?Se ela se encontra fora dela mesma, e sua casa é a compreensão, como pode ela entrar nela mesma para, exercendo sua virtude, buscar sua própria cura?

A cura do corpo depende da alma, sem dúvida. Mas a cura da alma depende dela mesma. No entanto, se toda cura depende de um método, como pode a alma estabelecer um para si mesma se ela ignora que ignora?Assim, e antes de tudo, é preciso que a alma conheça que está doente. Conhecer não é reconhecer. O reconhecer é uma passividade, ele é a aceitação de um juízo externo que outrem faz sobre nós mesmos, ao passo que o conhecer é uma atividade que só depende de nós mesmos, pois ele é a produção de um conhecimento apoiado em uma ideia adequada. Quando conhecemos que estamos doente, já não o estamos mais: já ultrapassamos a doença pelo esforço para compreendê-la. Quando conhecemos que estamos doentes na alma, é sempre a uma parte da alma que a doença se refere, e não à alma inteira. Na verdade, a  parte doente da alma é apenas a alma pelo avesso, alienada de si mesma. Do conhecimento da doença nasce um método, que é um esforço sobre si mesmo para adequar-se a si mesmo, à nossa ideia adequada. Esse esforço é a expressão de uma constância que só se torna contínua  quando nos colocamos de acordo conosco.

O método é um exercício sobre si: ele é uma medicina animi, ele é uma clínica. A verdadeira clínica não é luta contra a doença, mas potencialização da saúde.Somente quando não está mais pelo avesso é que nossa alma pode nos vestir e ser a ideia adequada de nós mesmos, ideia esta que nos dá coragem e firmeza.A clínica é a constituição de um modo de vida, de um pensar e de um agir adequados. "Método" significa: "caminho para".O método é um caminhar, um caminhar para. O método é um caminhar para nós mesmos, para a ideia adequada. Esta não é um fim que se coloca exterior ao caminhar, ela é a causa eficiente dele. A ideia adequada é o martelo que produz o caminhar . Como toda ferramenta, é o uso que a aperfeiçoa, ao mesmo tempo que aperfeiçoa o agir do  artesão que a tem nas mãos.A nossa existência é um caminhar para a essência, um caminhar de acordo com a essência.Por isso, o método é uma conduta cuja causa é a essência que expressamos. O método é um caminhar para a essência, isto é, um estar de acordo com aquilo que não nos falta, mas que nos é necessário produzir como modo de vida.






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