O desejo se origina do que Espinosa chama de apetite. O apetite
concerne tanto ao corpo quanto à mente, ao passo que a vontade diz respeito
apenas à mente. O desejo nada mais é do que o apetite consciente dele mesmo.
O apetite consciente de si mesmo já não se deixa determinar pelas coisas
que não são ele mesmo, coisas que lhe estão fora, como bens, dinheiro, riqueza,
fama. Quando se torna consciente de si mesmo, o apetite tornado desejo se liberta da ideia de que, para alcançar a
felicidade, precise possuir , ter,
comprar , ostentar e acumular coisas , ou rivalizar e competir para tê-las como dono exclusivo
delas.
Mas o apetite consciente de si mesmo não significa a mesma coisa que
ter consciência do apetite. É preciso termos cuido com o emprego das
palavras para não projetarmos em Espinosa questões que não são dele. Espinosa
não está dizendo que o apetite dependa da consciência reflexiva de um sujeito moral.
Ele afirma , ao contrário, que o desejo é o apetite consciente dele mesmo, e
desse ser consciente dele mesmo participa não apenas a mente , participa também
o corpo. Esse estar consciente não é uma reflexão, uma “interiorização”
moralizante, mas uma ação do apetite pensando ele mesmo, sua singularização e
potência, enfim, a sua conquista ética, que é a conquista de si mesmo.
Quando o apetite se torna consciente dele mesmo, não é apenas o apetite que se torna consciente de si mesmo, mas todo o nosso ser: nós mesmos nos tornamos conscientes de nós mesmos na medida em que exercemos potentemente o desejo , isto é, na medida em que nos tornamos causa, para nós mesmos e para os outros, mais de alegrias do que de tristezas, mais de amores do que de ódios, mais de ações do que de reações.
Originariamente, a palavra “apetite” tem o sentido de “pedir” , “ir em direção a”. Se o ato de pedir não for consciente de si mesmo, se ele não se pensar, desse pedir pode nascer um implorar , um mendigar, enfim, um padecer dependente , servo, reativamente passivo. Se o ato de pedir não for consciente de si mesmo, ele pode ser atraído e ir em direção a algo que o fará perder-se de si mesmo. E quando o apetite não é consciente de si mesmo, disso se valem os pregadores da culpa e da "falta" com seus discursos teológicos-moralizantes que demonizam o desejo.
Portanto, é assim que o apetite devém desejo: pedindo, antes de tudo, a si mesmo: indo em direção a si mesmo, à sua potência. Nesse
sentido originário, ser cons-ciente é ter ciência e pensar sua própria existência.
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