quarta-feira, 22 de maio de 2024

A intuição em Espinosa

 

A filosofia estabeleceu alguns cânones para averiguar como as ideias se relacionam entre si, umas com as outras. O Deducionismo, por exemplo, acredita que uma ideia é sempre extraída de outra ideia. “Deduzir” significa “extrair”.Para que se possa extrair uma ideia, é preciso que uma primeira ideia seja dada como verdadeira e fundamento da dedução. Se esta ideia também foi extraída de outra, então ela não é verdadeiramente a primeira, ela é derivada de uma outra. É por isso que o processo não pode ir ao infinito: é preciso  uma primeira Ideia como ponto fundante de toda a cadeia dedutiva, sendo que esta primeira ideia, da qual todas são extraídas, não é extraída de nenhuma outra que lhe seja mais eminente ou anterior ( do ponto de vista lógico e ontológico).Esta primeira Ideia não foi produzida ou criada: ela existe em si, idêntica a si mesma.

O Associacionismo , diferentemente, defende que toda ideia é uma associação de ideias, umas exteriores às outras. Toda ideia é como uma palavra, cujas letras são outras ideias. Por que as ideias se associam? Elas se associam pelas mesmas razões que levam a se associar  tudo o que se associa, incluindo os homens: existem Princípios que presidem a associação das ideias. O Princípio de Identidade, por exemplo, é um desses Princípios. Todavia, esses Princípios não produzem as ideias, eles apenas fornecem as regras mediante as quais as ideias se associam. As ideias compostas nascem das ideias simples, tal como a palavra que nasce das letras. Mas de onde vêm as ideias simples? A resposta do associacionismo, embora conhecida, nunca deixa de ser desconcertante: as ideias simples vêm da sensação, e esta não é uma ideia e tampouco é um princípio. A ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida. As ideias pressupõem uma desintensificação das sensações . Somente algo não vem da experiência: o espírito. Todavia, não se deve confundir o espírito com o ego ou com o sujeito constituído, pois ego e sujeito  também são  uma ideia composta nascida de ideias simples enquanto sensações desintensificadas. O espírito é o que contempla/contrai a sensação. Da contemplação nasce a ideia e da contração emergem os princípios que regrarão as ideias, constituindo assim uma natureza humana com sua psicologia e regras de associação. Mas o espírito antecede a natureza humana , e expressa um processo onde ainda não estão separadas  sensação e mente. “Contrair” é, ao mesmo tempo, “unir” e adquirir um “hábito”. A noção de hábito implica a de uma repetição. O espírito é a diferença que contempla a repetição da matéria. Ao contemplar o que se repete, o espírito contrai , une, o que na natureza está separado. E é por esse mecanismo do hábito que o espírito se põe acima do  dado. O espírito não extrai a ideia da sensação, ele simplesmente a contempla/contrai, de tal maneira que a ideia nasce nele sem que ele a produza, uma vez que a ideia é o enfraquecimento daquilo que ele contempla. É preciso levar em conta que a sensação não é um objeto, ela é um processo; tampouco o espírito é um sujeito, ele também é  um processo. Assim, é desse processo sensação-espírito que toda ideia nasce, e desse processo não se pode separar aquele que contempla, o contemplado e a contemplação. É por isso que nesse nível  não há sujeito ou objeto, embora já exista espírito e matéria: esta é repetição e aquele é diferença que contempla esta repetição. A repetição do contemplado é inseparável do espírito que o contempla, de tal  maneira que a repetição ocorre numa região que não se pode definir como subjetiva ou objetiva, pois está aquém destas distinções.

Em Espinosa, as ideias sempre nascem de ideias. Sócrates definia a filosofia como maiêutica, isto é, como arte de  partejar ideias. Partejar é fazer nascer, trazer ao mundo, à vida. Contudo, para que uma ideia possa ser partejada, é preciso que ela tenha sido, antes, fecundada. Na Grécia, Fecundar era a característica que expressa  Eros, o Amor. Não por acaso, em Espinosa o Desejo recebe o nome de “cupiditas” : relativo a Cupido/Eros.  Antes de a  ideia poder ser  intuída, ela já está contida dentro de outra ideia, e esta dentro de outra, e esta ainda dentro de outra...de tal maneira que   todas estão dentro da Ideia de Deus que lhes é imanente, pois todas são expressões diferentes  dessa mesma Ideia Infinita: Amor Infinito cujo fecundar também é Infinito . 

Em Espinosa, é a intuição o procedimento de unir cada ideia singular à Ideia da qual todas são a expressão. E quanto mais adequadamente cada ideia singular expressa a Ideia Infinita que lhe fecundou , mais cada uma é adequadamente a ideia do corpo ao qual ela está ligada, e mais o desejo , concernindo ao espírito e ao corpo, se torna potência de singularização ética, política e clínica.






3 comentários:

fabio disse...

Muito bom, obrigado Professor!!
Quando puder, poderia falar um pouquinho sobre o terceiro gênero de conhecimento em Espinosa?

fabio disse...

Muito bom, obrigado professor!!

Quando puder, poderia escrever sobre o terceiro gênero de conhecimento em Espinosa?

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Obrigado, Fábio.

Farei em breve, abraços.