segunda-feira, 28 de agosto de 2023

o que é o comum?

 

O comum é aquilo que é igual tanto no todo quanto nas partes. É Espinosa que nos fornece essa definição.O comum não nasce da mera associação de indivíduos. Estes somente se associam mediante um contrato, contrato este que eles são obrigados a seguir, pois o descumprimento do mesmo pode acarretar alguma sanção ou prejuízo.  O pressuposto dos contratos é a primazia do indivíduo.

O comum não nasce de contratos ou receio de prejuízos.Quando nasce um comum, cada indivíduo se torna parte do comum que os agencia. Equivocadamente, sempre imaginamos o todo como um conjunto fechado.E dentro dele imaginamos seus componentes.O todo seria o continente e os componentes seriam o conteúdo.Imaginamos ainda que apenas os componentes estabelecem relações, e que o todo-conjunto sempre permaneceria o mesmo, independentemente das relações de seus componentes.Imaginamos até mesmo um conjunto vazio, sem componentes.Mas nada disso traduz o que Espinosa chama de comum.

O comum não existe como um conjunto . O comum nasce das relações: ele é a própria relação.Os contornos de um comum vão até onde alcança o nosso poder de agir e de pensar.O conhecimento, por exemplo, é como uma gaiola que nos encerra em padrões imutáveis existindo em limites delimitados ou é algo que nos amplia?Ampliar-se pelo conhecimento não é aumentar o tamanho físico de nosso corpo, tampouco aumentar a extensão das coisas que podemos dizer nossas, como propriedades privadas; o conhecimento nos amplia pelas conexões que ele nos possibilita, tornando-nos  partes de infinitas coisas: parte da pólis, parte do planeta, parte da noosfera, parte do infinito, parte das descobertas que nós mesmos fazemos, enfim,parte do conhecimento mesmo que nos amplia.

A amizade nasce de um contrato? O amor se mantém por um contrato? E mesmo a justiça, ela é garantida apenas pelos contratos?Amizade, amor, justiça, conhecimento...são noções comuns. São várias as causas que fazem nascer o comum, mas a mais forte é a alegria.Ao contrário,muitas relações tristes somente se mantêm pelos contratos que as obriga.

 Para Espinosa, a alegria é um aumento do nosso poder de agir, do nosso poder de existir. Assim, o comum não nasce para nos limitar, tal como o contrato, mas para nos expandir.Há uma dimensão do afeto na instituição do comum. E destruir o comum é destruir parte de nós mesmos.O comum nasce do agencimento, não da associação ou união.

O comum não nasce no exterior dos indivíduos , assim como os contratos que dependem do Estado e de suas polícias; o comum nasce na imanência dos indivíduos, em seus desejos.

Segundo Espinosa, o todo é maior que a mera soma de suas partes. Assim, quanto mais afirmamos o comum, mais existimos nele, ele que sempre nos aumenta. Mas o comum não existe apenas nele ou nas partes, ele existe tanto nele quanto nas partes. Por exemplo, o conhecimento como o comum que liga professor e alunos não existe apenas nele mesmo, como um céu inatingível, tampouco existe apenas no professor; o conhecimento existe nele mesmo, no professor e também no aluno. O conhecimento não existe apenas naquele que ensina, ele existe também naquele que aprende; e mesmo aquele que ensina, enquanto parte do conhecimento, aprende também com o ensino enquanto todo que é mais do que ele. O comum não é um território com cercas delimitadas, ele é um  processo: nele há lugar para a invenção,invenção do conhecimento e de nós mesmos.

A amizade que une Pedro e Paulo não está apenas em Pedro ou em Paulo, está em ambos e mais na própria amizade enquanto ideia comum que os torna amigos.Pedro é parte de Paulo enquanto ambos são partes da amizade, pois o comum não existe sem partes.Um conjunto pode existir sem componentes, como conjunto vazio, mas não pode existir amizade sem amigos, amor sem amantes, ensino sem professor e aluno.

O amor que liga Pedro e Maria não está apenas em Pedro ou em Maria, mas está em ambos enquanto eles são partes, partes singulares,do amor que os agencia. Pedro não ama Maria por obrigação e nem mantém o laço por obrigação, a não ser que reduzamos o amor a um contrato, inclusive um contrato apenas moral.

Não se deve confundir indivíduo e singularidade.Por se oporem como átomos isolados, os indivíduos somente se unem mediante contratos que eles realizam por suas respectivas vontades.A primazia do indivíduo o faz existir como um todo à parte: onda sem mar,mão sem braço,nuvem sem céu, fruto sem árvore.Mas somente quando produz o comum que também o produz, o indivíduo devém singularidade, pois é somente como parte de um comum  que podemos nos singularizar.Singularizar-se não é enrijecer nossos contornos de acordo com uma identidade,mas descobrir que são as relações que nos constituem também intimamente.E toda relação que singulariza é composta de três, e não de dois. Ela é constituída por aqueles que se agenciam e mais o comum que dá sentido ao agenciamento.

Quando entre os indivíduos não existe um comum que os agencia, eles passarão a existir de tal forma que um quererá impor ao outro a sua maneira de ser, o que dará nascimento a esperança de reconhecimento por mero reconhecimento e medo de rejeição, o que acaba por fomentar ódios recíprocos, mantidos ocultamente ou explicitamente.

O comum não é o mero consenso nascido da semelhança da opinião de indivíduos.O comum é a criação de um terceiro indivíduo do qual me torno parte, não como indivíduo, mas como singularidade.Ou seja, produzimos o comum enquanto potencializamos nossa diferença.Pois potencializo minha diferença quando a faço parte, parte ativa, de uma diferença ainda maior.Somente as diferenças se agenciam : na e pela diferença.São as diferenças que nos assemelham, não a identidade.É uma ilusão profunda imaginar que existe uma ideia geral de amizade, uma ideia geral do amor, uma ideia geral do ensino, que passarão a ser impostas então como padrão ou modelo.O comum não é uma ideia geral.Assim, existem mil maneiras diferentes de se produzir a amizade, o amor, o conhecimento....Um museu produz uma ideia de conhecimento totalmente diferente da escola formal.Mas entre o museu e a escola existe ainda um comum: o conhecimento como ideia plural que cada um realiza de forma diferente.O comum não é paradigmático, ele é sintagmático.

O comum não é um mero efeito, ele é causa: a amizade nos torna amigos, o conhecimento nos torna agentes do conhecimento ( não só o professor é agente, o aluno também o é). O comum não o é apenas em relação a almas, ele também envolve os corpos. Nasce não apenas uma alma comum entre os amigos, nasce igualmente um corpo comum, corpo que não é apenas fisiológico ou orgânico, mas corpo afetivo, qualitativo e intensivo.É um corpo onde ambos se apoiam para agir.

 O corpo tem por virtude a ação. Assim, um amigo é aquele que podemos reconhecer pelas ações, assim como se reconhece pelas ações um professor e um aluno, desde que também exista a educação como o comum que também liga suas almas. O comum não concerne apenas à alma ou ao corpo, mas aos dois.

 

Eu sou mestiço, amigo.

Não sou preto e nem branco.

O amor mistura tudo.

E esse é seu extremismo:

casar extremos.




Um comentário:

cauepizindim disse...

Nenhum paradoxo logrou nos expulsar do paraíso de Georg Cantor, mas a Teoria dos Conjuntos não mais faz parte do Ensino Fundamental.