Acalântis
era uma jovem que desafiou as Musas, deusas das artes ( “Musa” significa: “conhecimento
que vem das artes”). O desafio não foi por mera vaidade ou pretensão. Acalântis
não as desafiou xingando ou ameaçando, ela as desafiou cantando.
Toda
criação artística potente é um desafio que o artista lança à arte e a si mesmo,
para assim reinventar arte e vida, pois nada de novo se cria sem desafios.
As
obras de Van Gogh são um desafio lançado à pintura ; os solos de sax de John
Coltrane são um desafio lançado à música; os versos de Manoel de Barros são um
desafio lançado à poesia.
Com
sua arte, o artista desafia a matéria e o espírito a se amar para serem um
único ser na obra que nasce, como um ser vivo.
Essa
união singular entre corpo e espírito para formarem um único ser vivo, seja
gente ou obra de arte , o poeta-filósofo Lucrécio chamava de “concílio”.
Acalântis
cantava estando feliz ou triste, amando ou desgostando, fosse primavera ou
inverno. E quem a ouvia era acalantado: aumentando a alegria ou diminuindo a
dor.
As
Musas se surpreenderam com a arte de cantar de Acalântis. Além da beleza, havia
também calor no canto de Acalântis, como se dentro dela brilhasse um sol.
Então
, para que o canto de Acalântis ganhasse asas e pudesse ir longe, as Musas
transformaram Acalântis num passarinho canoro: o pintassilgo, conhecido como “o
passarinho cujo canto acalanta”.
“Acalantar”
significa : contagiar com calor, com vida. O pintassilgo acalanta não só aos
ouvidos com seu canto , ele acalanta também o ser inteiro de quem sabe achar no
canto um ninho.
A
arte não é só canto de alegria , ela também pode ser clínica e nos auxiliar a
curar a dor , tanto as físicas quanto as psíquicas.
O
pintor acalanta com suas cores, a cantora acalanta com sua voz , o poeta
acalanta com suas palavras-assobio : para que não morramos do frio desses dias
sombrios.
Para quem as sabe ver , ouvir e sentir, cor , voz e palavra também são ninhos, para assim fazermos como ensina Manoel de Barros: “Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo.”
( bem cedinho, todo dia sou acordado pelo canto de um bem-te-vi . Ele fez ninho numa árvore perto de minha janela. Mal nasce o dia, o bem-te-vi já está cantando . Nem mesmo um carcará imenso que ronda por aqui mete medo no bem-te-vi. Ao ouvi-lo cantando, pensei: “Hoje chove, chove, chove...Mesmo assim ele persevera com sua arte.” Fui à janela : assim que o vi , ele voou atravessando a fina chuva e pousou no galho mais alto. Ele então cantou e apareceu outro bem-te-vi , ambos dividindo o mesmo galho. Olharam para o horizonte, tomaram coragem e para lá voaram... Foram eles que me lembraram hoje “Acalântis” )
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