sexta-feira, 4 de agosto de 2023

os monstros

 

Tempos atrás fui convidado para dar um curso de Direitos Humanos para as forças policiais da Bahia. Àquela época, essas forças policiais  eram consideradas as mais violentas do Brasil. Os policiais não estavam no curso porque queriam, e sim em razão de receberem benefícios ( frequentar o curso aumentava o soldo deles)  .

Quando entrei na sala no primeiro dia de aula, reparei que a maioria estava  armada , pois muitos vinham de operações policiais ou estavam indo para uma.

Antes mesmo de eu me apresentar, um agente de segurança me fuzilou com uma pergunta : “O senhor já subiu uma favela?” Respondi indo ao quadro para escrever  uma  frase de Nietzsche, que usei como escudo para me proteger daquele  fuzilamento feito com palavras preconceituosas. Foi esta a frase :  “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.”

Depois respondi que não só já subi o morro de uma favela , como também já morei no alto  de uma: morei no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, terra da Escola de Samba Vila Isabel, berço de poetas.

 Morei lá quando era estudante de filosofia na UERJ, que fica ali perto. Também disse que várias vezes li Nietzsche e Espinosa no interior de um trem da Central do Brasil, e inúmeras  vezes também subi o morro com livros de filosofia e poesia na mão, pois são essas as armas nas quais acredito , e é com elas que luto.

Disse também  que esses filósofos e poetas agora me acompanham na sala de aula, na minha fala de professor. E que eu acreditava que potencializou ainda mais suas filosofias o fato de   Espinosa e Nietzsche   terem andado de trem e subido o morro  .

A monstruosidade de que fala Nietzsche não é apenas a violência física , a monstruosidade também é a brutal e desumana  injustiça social geradora de fome e miséria;  a monstruosidade também é a falta de creche e escola para as crianças da favela, roubando-lhes o futuro; monstruosidade são os juros aviltantes ; monstruosidade também é a milícia que veste uniformes da polícia; monstruosidade maior é termos tido um presidente miliciano-genocida, hoje representado pelo governador de São Paulo e sua PM fascista.

Quando o curso terminou, alguns  se desarmaram. Um deles, inclusive, me mostrou um quadro de aviso que ele havia feito com um pedaço de lousa  de  mais ou menos um metro quadrado . Ele me disse que ia afixar o quadro no mural de avisos da delegacia dele. No quadro feito por ele estava escrito: “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos  monstros.”

 


( Imagem: “Éramos as cinzas e agora somos o fogo” , da série Pardo é papel, 2018, do artista e morador do Morro  da Rocinha  Maxwell Alexandre )



Esta música é de 1969, era uma canção de resistência à ditatura militar. Martinho da Vila e outros poetas/compositores da Escola de Samba Vila Isabel estavam sempre no Morro dos Macacos em rodas de samba populares. A expressão “homem de bem”, cantada por Martinho na música, tinha à época um sentido diferente do que tem hoje na boca dos fascistas.




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