O comum é aquilo que é
igual tanto no todo quanto nas partes. É Espinosa que nos fornece essa
definição.O comum não nasce da mera associação de indivíduos. Estes somente se
associam mediante um contrato, contrato este que eles são obrigados a seguir,
pois o descumprimento do mesmo pode acarretar alguma sanção ou prejuízo. O pressuposto dos contratos é a primazia do
indivíduo.
O comum não nasce de
contratos ou receio de prejuízos.Quando nasce um comum, cada indivíduo se torna
parte do comum que os agencia. Equivocadamente, sempre imaginamos o todo como
um conjunto fechado.E dentro dele imaginamos seus componentes.O todo seria o
continente e os componentes seriam o conteúdo.Imaginamos ainda que apenas os
componentes estabelecem relações, e que o todo-conjunto sempre permaneceria o
mesmo, independentemente das relações de seus componentes.Imaginamos até mesmo
um conjunto vazio, sem componentes.Mas nada disso traduz o que Espinosa chama
de comum.
O comum não existe como
um conjunto . O comum nasce das relações: ele é a própria relação.Os contornos
de um comum vão até onde alcança o nosso poder de agir e de pensar.O
conhecimento, por exemplo, é como uma gaiola que nos encerra em padrões
imutáveis existindo em limites delimitados ou é algo que nos amplia?Ampliar-se
pelo conhecimento não é aumentar o tamanho físico de nosso corpo, tampouco
aumentar a extensão das coisas que podemos dizer nossas, como propriedades
privadas; o conhecimento nos amplia pelas conexões que ele nos possibilita,
tornando-nos partes de infinitas coisas:
parte da pólis, parte do planeta, parte da noosfera, parte do infinito, parte
das descobertas que nós mesmos fazemos, enfim,parte do conhecimento mesmo que
nos amplia.
A amizade nasce de um
contrato? O amor se mantém por um contrato? E mesmo a justiça, ela é garantida
apenas pelos contratos?Amizade, amor, justiça, conhecimento...são noções
comuns. São várias as causas que fazem nascer o comum, mas a mais forte é a
alegria.Ao contrário,muitas relações tristes somente se mantêm pelos contratos
que as obriga.
Para Espinosa, a alegria é um aumento do nosso
poder de agir, do nosso poder de existir. Assim, o comum não nasce para nos
limitar, tal como o contrato, mas para nos expandir.Há uma dimensão do afeto na
instituição do comum. E destruir o comum é destruir parte de nós mesmos.O comum
nasce do agencimento, não da associação ou união.
O comum não nasce no
exterior dos indivíduos , assim como os contratos que dependem do Estado e de
suas polícias; o comum nasce na imanência dos indivíduos, em seus desejos.
Segundo Espinosa, o todo
é maior que a mera soma de suas partes. Assim, quanto mais afirmamos o comum,
mais existimos nele, ele que sempre nos aumenta. Mas o comum não existe apenas
nele ou nas partes, ele existe tanto nele quanto nas partes. Por exemplo, o
conhecimento como o comum que liga professor e alunos não existe apenas nele
mesmo, como um céu inatingível, tampouco existe apenas no professor; o conhecimento
existe nele mesmo, no professor e também no aluno. O conhecimento não existe
apenas naquele que ensina, ele existe também naquele que aprende; e mesmo
aquele que ensina, enquanto parte do conhecimento, aprende também com o ensino
enquanto todo que é mais do que ele. O comum não é um território com cercas
delimitadas, ele é um processo: nele há
lugar para a invenção,invenção do conhecimento e de nós mesmos.
A amizade que une Pedro e
Paulo não está apenas em Pedro ou em Paulo, está em ambos e mais na própria
amizade enquanto ideia comum que os torna amigos.Pedro é parte de Paulo
enquanto ambos são partes da amizade, pois o comum não existe sem partes.Um
conjunto pode existir sem componentes, como conjunto vazio, mas não pode
existir amizade sem amigos, amor sem amantes, ensino sem professor e aluno.
O amor que liga Pedro e
Maria não está apenas em Pedro ou em Maria, mas está em ambos enquanto eles são
partes, partes singulares,do amor que os agencia. Pedro não ama Maria por
obrigação e nem mantém o laço por obrigação, a não ser que reduzamos o amor a
um contrato, inclusive um contrato apenas moral.
Não se deve confundir
indivíduo e singularidade.Por se oporem como átomos isolados, os indivíduos
somente se unem mediante contratos que eles realizam por suas respectivas
vontades.A primazia do indivíduo o faz existir como um todo à parte: onda sem
mar,mão sem braço,nuvem sem céu, fruto sem árvore.Mas somente quando produz o
comum que também o produz, o indivíduo devém singularidade, pois é somente como
parte de um comum que podemos nos
singularizar.Singularizar-se não é enrijecer nossos contornos de acordo com uma
identidade,mas descobrir que são as relações que nos constituem também
intimamente.E toda relação que singulariza é composta de três, e não de dois.
Ela é constituída por aqueles que se agenciam e mais o comum que dá sentido ao
agenciamento.
Quando entre os
indivíduos não existe um comum que os agencia, eles passarão a existir de tal
forma que um quererá impor ao outro a sua maneira de ser, o que dará nascimento
a esperança de reconhecimento por mero reconhecimento e medo de rejeição, o que
acaba por fomentar ódios recíprocos, mantidos ocultamente ou explicitamente.
O comum não é o mero
consenso nascido da semelhança da opinião de indivíduos.O comum é a criação de
um terceiro indivíduo do qual me torno parte, não como indivíduo, mas como
singularidade.Ou seja, produzimos o comum enquanto potencializamos nossa
diferença.Pois potencializo minha diferença quando a faço parte, parte ativa,
de uma diferença ainda maior.Somente as diferenças se agenciam : na e pela
diferença.São as diferenças que nos assemelham, não a identidade.É uma ilusão
profunda imaginar que existe uma ideia geral de amizade, uma ideia geral do
amor, uma ideia geral do ensino, que passarão a ser impostas então como padrão
ou modelo.O comum não é uma ideia geral.Assim, existem mil maneiras diferentes
de se produzir a amizade, o amor, o conhecimento....Um museu produz uma ideia
de conhecimento totalmente diferente da escola formal.Mas entre o museu e a
escola existe ainda um comum: o conhecimento como ideia plural que cada um
realiza de forma diferente.O comum não é paradigmático, ele é sintagmático.
O comum não é um mero
efeito, ele é causa: a amizade nos torna amigos, o conhecimento nos torna
agentes do conhecimento ( não só o professor é agente, o aluno também o é). O
comum não o é apenas em relação a almas, ele também envolve os corpos. Nasce
não apenas uma alma comum entre os amigos, nasce igualmente um corpo comum,
corpo que não é apenas fisiológico ou orgânico, mas corpo afetivo, qualitativo
e intensivo.É um corpo onde ambos se apoiam para agir.
Eu sou
mestiço, amigo.
Não sou
preto e nem branco.
O amor
mistura tudo.
E esse é
seu extremismo:
casar
extremos.
Um comentário:
Nenhum paradoxo logrou nos expulsar do paraíso de Georg Cantor, mas a Teoria dos Conjuntos não mais faz parte do Ensino Fundamental.
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