FILOSOFIA E DIFERENÇA[1]
Na Introdução do livro O
que é a filosofia?, Deleuze e Guattari afirmam que os conceitos
filosóficos são criados. Por serem criados, eles também recebem a assinatura
daquele que os criou. Assim, o filósofo empresta seu nome para que este designe
mais do que sua mera pessoa. Por exemplo, a Substância de Aristóteles, o Uno de
Plotino, o Cogito de Descartes, a Mônada de Leibniz, a Vontade de Potência de
Nietzsche, a Duração de Bergson, o Rizoma de Deleuze e Guattari...
A ideia de Substância em
Aristóteles não é a mesma que em Espinosa; a noção de Dialética em Platão tem
sentido diferente da Dialética em Marx. Se a ideia de Substância existisse em
si , isto é, incriada, ela seria a mesma em Aristóteles e Espinosa; se a noção
de Dialética fosse a mesma em Platão e Marx, não haveria diferença entre Platão
e Marx, isto é, seus nomes não seriam assinaturas que expressam , cada um,
modos distintos de construir sentidos para a realidade. Quando assina a criação
de um conceito, o nome do filósofo não
designa mais apenas a sua pessoa, seu nome passa a expressar um novo mundo que o
filósofo instaurou.
Na pintura “A Escola de
Atenas”, de Rafael, em sua cena
central vemos dois filósofos: Platão e Aristóteles. O
primeiro faz um gesto apontando para cima , ao passo que o segundo estende a
mão de forma espalmada. Em uma das mãos cada um segura sua obra principal, e a
posição do livro acompanha a direção do gesto realizado pela outra mão. Assim,
Platão segura em posição vertical sua obra Timeu, enquanto
Aristóteles mantém na horizontal a sua Ética a Nicômaco. A mão de
Platão e a posição do livro Timeu reproduzem a principal ideia de Platão: a de que a
filosofia é uma ascensão rumo ao Céu Transcendente das Ideias; já a Ética
de Aristóteles busca estudar as relações humanas tal como essas acontecem no
plano horizontal da pólis.
Se o quadro de Rafael
fosse um filme, veríamos que ,antes de se colocar ao lado de Platão , Aristóteles
andava atrás de seu mestre Platão, quando então era seu discípulo. Foi um ato
de autonomia filosófica , e não de mera rivalidade egoica, Aristóteles
colocar-se agora ao lado do seu antigo mestre, pois agora o próprio Aristóteles
se tornava um mestre. Ele se tornou um mestre criando o conceito de Substância,
instaurando assim um espaço filosófico diferente , no qual não há mais lugar
para o Céu das Ideias de Platão.
Mas o centro do quadro
não é Platão ou Aristóteles. Na pintura, chama-se ponto de fuga o lugar
pictórico no qual se encontra o centro do quadro. Na referida obra, o centro do
quadro é o espaço entre Platão e Aristóteles, isto é, o centro do
quadro é a Diferença.
A filosofia não é Platão,
a filosofia não é Aristóteles: nenhum filósofo específico é a filosofia, a não
ser que se transforme a filosofia em religião-seita e se faça de um determinado
filósofo um Deus a proferir Dogmas inquestionáveis, os quais requerem obediência
acrítica , e não pensar livre.
O filósofo que mais se
aproxima desse intervalo da Diferença é aquele que busca um processo de desterritorialização no
qual os Conceitos criados se abrem a um Plano de Imanência não conceitual,
Plano esse traçado tal como os traços de
Van Gogh que povoam a tela branca , para sobre esses traços Van Gogh criar seu
girassol, seus campos de trigo, seu sol nascente[2]...
O filósofo da Diferença
realiza algo semelhante: ele não parte de Deus ou de Transcendências, ele parte
de uma realidade primeira semelhante ao que para o pintor é a tela branca : sobre essa realidade inaugural[3]
, realidade essa “Para Além do Bem e do Mal”, o filósofo traça um Plano de
Imanência ( como a Natureza Naturante ou o Absolutamente Infinito em Espinosa)
, e sobre esse Plano cria seus Conceitos .
Os Conceitos são o girassol do Filósofo.
[1]
Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.
[2]
Segundo Deleuze, uma tela branca nunca está realmente branca, pois “clichês” a
ocupam previamente antes mesmo de o pintor começar a pintar. Por isso, para
quebrar esse mecanismo psicossocial dos clichês, alguns pintores como Pollock e
Van Gogh procedem por traços que visam quebrar a “representação realista do
senso comum”. Esses traços são assignificantes, ou seja, eles não significam nada
a não ser movimentos, intensidades, velocidades. Desse modo, o girassol de Van
Gogh não é pintado diretamente sobre a tela branca, uma vez que o girassol
nasce desses traços que lhe preparam um plano, um espaço de expressão
( e não de representação).
[3]
Apoiando-se na Semiótica e Ontologia de Peirce, Deleuze designa essa realidade
inaugural de “Zeroidade” ( é sobre essa “Zeroidade” que depois surgem a Primeiridade
das realidades singulares, a Segundidade das relações e a Terceiridade das regras). Manoel de
Barros, por sua vez, chama de o “Antesmente Verbal” a essa realidade inaugural
.
Van Gogh: "O semeador" e "Girassol":
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