quarta-feira, 17 de maio de 2023

filosofia e diferença

 

                                       FILOSOFIA E DIFERENÇA[1]

 

Na Introdução do livro O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari afirmam que os conceitos filosóficos são criados. Por serem criados, eles também recebem a assinatura daquele que os criou. Assim, o filósofo empresta seu nome para que este designe mais do que sua mera pessoa. Por exemplo, a Substância de Aristóteles, o Uno de Plotino, o Cogito de Descartes, a Mônada de Leibniz, a Vontade de Potência de Nietzsche, a Duração de Bergson, o Rizoma de Deleuze e Guattari...

A ideia de Substância em Aristóteles não é a mesma que em Espinosa; a noção de Dialética em Platão tem sentido diferente da Dialética em Marx. Se a ideia de Substância existisse em si , isto é, incriada, ela seria a mesma em Aristóteles e Espinosa; se a noção de Dialética fosse a mesma em Platão e Marx, não haveria diferença entre Platão e Marx, isto é, seus nomes não seriam assinaturas que expressam , cada um, modos distintos de construir sentidos para a realidade. Quando assina a criação de um conceito, o nome do filósofo  não designa mais apenas a sua pessoa, seu nome passa a expressar um novo mundo que o filósofo instaurou.

Na pintura “A Escola de Atenas”, de Rafael,  em sua cena central  vemos  dois filósofos: Platão e Aristóteles. O primeiro faz um gesto apontando para cima , ao passo que o segundo estende a mão de forma espalmada. Em uma das mãos cada um segura sua obra principal, e a posição do livro acompanha a direção do gesto realizado pela outra mão. Assim, Platão segura em posição vertical sua obra Timeu, enquanto Aristóteles mantém na horizontal a sua Ética a Nicômaco. A mão de Platão e a posição do livro Timeu reproduzem  a principal ideia de Platão: a de que a filosofia é uma ascensão rumo ao Céu Transcendente das Ideias; já a Ética de Aristóteles busca estudar as relações humanas tal como essas acontecem no plano horizontal da pólis.

Se o quadro de Rafael fosse um filme, veríamos que ,antes de se colocar ao lado de Platão , Aristóteles andava atrás de seu mestre Platão, quando então era seu discípulo. Foi um ato de autonomia filosófica , e não de mera rivalidade egoica, Aristóteles colocar-se agora ao lado do seu antigo mestre, pois agora o próprio Aristóteles se tornava um mestre. Ele se tornou um mestre criando o conceito de Substância, instaurando assim um espaço filosófico diferente , no qual não há mais lugar para o Céu das Ideias de Platão.

Mas o centro do quadro não é Platão ou Aristóteles. Na pintura, chama-se ponto de fuga o lugar pictórico no qual se encontra o centro do quadro. Na referida obra, o centro do quadro é o espaço entre Platão e Aristóteles, isto é, o centro do quadro é a Diferença.

A filosofia não é Platão, a filosofia não é Aristóteles: nenhum filósofo específico é a filosofia, a não ser que se transforme a filosofia em religião-seita e se faça de um determinado filósofo um Deus a proferir Dogmas inquestionáveis, os quais requerem obediência acrítica , e não pensar livre.

O filósofo que mais se aproxima desse intervalo da Diferença é aquele que  busca um processo de desterritorialização no qual os Conceitos criados se abrem a um Plano de Imanência não conceitual, Plano esse traçado  tal como os traços de Van Gogh que povoam a tela branca , para sobre esses traços Van Gogh criar seu girassol, seus campos de trigo, seu sol nascente[2]...

O filósofo da Diferença realiza algo semelhante: ele não parte de Deus ou de Transcendências, ele parte de uma realidade primeira semelhante ao que para o pintor é a tela branca :  sobre essa realidade inaugural[3] , realidade essa “Para Além do Bem e do Mal”, o filósofo traça um Plano de Imanência ( como a Natureza Naturante ou o Absolutamente Infinito em Espinosa) , e sobre esse Plano cria seus Conceitos .  Os Conceitos são o girassol do Filósofo.



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] Segundo Deleuze, uma tela branca nunca está realmente branca, pois “clichês” a ocupam previamente antes mesmo de o pintor começar a pintar. Por isso, para quebrar esse mecanismo psicossocial dos clichês, alguns pintores como Pollock e Van Gogh procedem por traços que visam quebrar a “representação realista do senso comum”. Esses traços são assignificantes, ou seja, eles não significam nada a não ser movimentos, intensidades, velocidades. Desse modo, o girassol de Van Gogh não é pintado diretamente sobre a tela branca, uma vez que o girassol nasce desses traços que lhe preparam um plano, um espaço de expressão ( e não de representação).

[3] Apoiando-se na Semiótica e Ontologia de Peirce, Deleuze designa essa realidade inaugural de “Zeroidade” ( é sobre essa “Zeroidade” que depois surgem a Primeiridade das realidades singulares, a Segundidade das relações  e a Terceiridade das regras). Manoel de Barros, por sua vez, chama de o  “Antesmente Verbal” a essa realidade inaugural .








Van Gogh: "O semeador" e "Girassol":







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