quinta-feira, 2 de março de 2023

o antropólogo, o indígena, Duchamp e a contracultura

 

              O ANTROPÓLOGO, O INDÍGENA, DUCHAMP E A CONTRACULTURA[1]

 

 Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar

que não tínhamos visto o que vemos.

                   Paul Valéry.

 

Certa vez, na década de 50, um antropólogo inglês  realizava  uma pesquisa de campo numa tribo africana. Ao entrar na oca de um indígena, o antropólogo se deparou com um acontecimento inesperado e desconcertante: pendurada na parede da habitação indígena estava uma máquina de escrever. Naquela época, a máquina de escrever representava mais ou menos o que hoje representa um computador, ou seja, o símbolo técnico do  desenvolvimento intelectual da cultura branca letrada.

Entre nós, “civilizados”,   sabemos qual o significado de uma máquina de escrever, pois seu sentido é construído tendo como referência a sua utilidade. De fato,  o senso comum costuma pensar que o sentido de toda e qualquer coisa se explica pelo seu uso objetivo,  aceito por todos como “normal”. No entanto, na parede da oca a máquina era tão somente um objeto decorativo sem nenhuma função  ou significado aparente, e ali permanecia como presa estranha da kunstwollen[2] do indígena.

Talvez fosse até mesmo impróprio chamá-la pelo nome que nós a designamos, pois ela já não era mais uma “máquina de escrever”: despida da designação costumeira mediante a qual a reconhecemos como algo que nos é familiar e conhecido , a máquina agora se tornara  algo que nenhuma de nossas palavras conhecidas poderia representar. E ali estava ela, como um artefato que já não servia mais para alguém datilografar pensamentos, mas que  no entanto agora estava servindo  para inquietar o antropólogo , e assim forçá-lo a pensar.

Apesar de ter seu espírito carregado de dúvidas, o antropólogo nada perguntou ao indígena a respeito do objeto que estava em sua parede. De volta a Londres, o pesquisador se pôs pensativo sentado à sua escrivaninha de trabalho e diante da sua máquina de escrever. Subitamente, ele olhou para a parede de sua sala e viu repetido nela o acontecimento que o surpreendera na habitação indígena: pois pendurados diante de seus olhos estavam um arco e flecha... Então, o antropólogo pôde compreender, através da atitude que ele mesmo tomara em relação aos objetos técnicos da cultura indígena, o gesto do indígena em relação à máquina de escrever.

Fora da cultura ou do território simbólico de referência, qualquer objeto pode entrar em um devir eminentemente estético, que traduz o seu caráter “inútil”, desterritorializado— isto é, não pertencente a um território que nos seja habitual. E é essa “inutilidade”, passível de sobrevir a toda e qualquer coisa, que nos permite aprender algo de importante sobre nós mesmos e sobre a nossa própria sociedade , para a qual o valor supremo   é exatamente o da utilidade.

Paradoxalmente, para compreender  melhor o valor mais propalado  de nossa civilização, foi preciso que o antropólogo se achasse  numa outra sociedade, em tudo diferente da nossa, e descobrisse aí que a compreensão verdadeira  de alguma coisa exige que tomemos distância não apenas da própria coisa, já que  precisamos também nos afastar sobretudo de nós mesmos ,  do nosso irrefreável impulso , como dizia Nietzsche, de nos esquecermos de que somente  reencontramos nas coisas aquilo que nós mesmos nelas colocamos. O ato de reencontrar é próprio  à (cons)ciência, mas o ato de colocar somente se explica se entendermos que o fundamento de tudo é a criação, a arte.

Por esse motivo,  a atitude do indígena para com a máquina de escrever talvez também nos possa ensinar algo a respeito dos problemas colocados   pela arte contemporânea. Pois, de maneira geral,  a visão que o artista tem do mundo   efetiva-se ao elevar à condição de artifício (isto é, de objeto criado ou inventado) todo e qualquer objeto  que o senso comum toma como dado ou natural. Para o artista nada é óbvio . Nesse sentido,  o artista se parece um pouco com uma criança. E dentre todas as pessoas de nossa sociedade, as crianças são aquelas que, por sua inocência, mais se assemelham aos indígenas.  O artista sabe que tudo aquilo que tem um sentido padrão e inquestionável hoje, um dia foi inventado por alguém .Tudo é produção, arte : eis o que o artista  descobre ao exercer em si mesmo o tornar-se estrangeiro em sua própria civilização e pátria, tornando-se um indígena no seio de sua própria cultura “civilizada”, pois é com um olhar semelhante ao do indígena sobre a nossa cultura que o artista, dentro de nossa própria sociedade “civilizada”,  olha para as coisas que para o senso comum parecem óbvias e com um sentido acabado. 

É curioso notar que “estranho” e “estrangeiro” têm uma mesma raiz semântica, e significam originalmente  “aquilo que foge ao padrão e ao comum” .E dentre os artistas contemporâneos, ninguém mais do que Duchamp nos mostrou, com seus ready-made, o caráter problematizador  e inventivo da arte. Ninguém mais do que Duchamp fez brotar ,no seio da cultura,  as forças da contracultura: as forças criativas e inovadoras da arte. Diante das obras de Duchamp, nos sentimos um pouco como aquele antropólogo que descobriu, em meio ao habitual e ao comum, o inesperado e o novo.

Por isso , se quisermos sair da posição de passividade que nos leva a reconhecer nas coisas significados prontos e inquestionáveis , devemos  olhar para as coisas tidas por “úteis”  e “objetivas” com um certo olhar de estranhamento e de questionamento, como se em nós morasse, livre e insubmisso, um eterno indígena ou um eterno artista — cuja principal obra a criar  fosse não exatamente um quadro ou uma escultura, mas a sua própria vida :  para assim produzir, como queria Foucault,  uma existência  bela.

 



[1] Capítulo de livro de minha autoria ( cuja capa ilustra a postagem).

 

[2] Kusntwollen : termo técnico alemão originado dos estudos artísticos, e que significa “vontade artística que conduz o artista, ou alguém, a criar uma obra de arte”. Kunst = arte + wollen= vontade.




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