O ANTROPÓLOGO, O INDÍGENA, DUCHAMP E A CONTRACULTURA[1]
Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar
que não tínhamos visto
o que vemos.
Paul Valéry.
Certa vez, na década de
50, um antropólogo inglês realizava uma pesquisa de campo numa tribo africana. Ao
entrar na oca de um indígena, o antropólogo se deparou com um acontecimento
inesperado e desconcertante: pendurada na parede da habitação indígena estava
uma máquina de escrever. Naquela época, a máquina de escrever representava mais
ou menos o que hoje representa um computador, ou seja, o símbolo técnico
do desenvolvimento intelectual da
cultura branca letrada.
Entre nós,
“civilizados”, sabemos qual o
significado de uma máquina de escrever, pois seu sentido é construído tendo como
referência a sua utilidade. De fato, o
senso comum costuma pensar que o sentido de toda e qualquer coisa se explica
pelo seu uso objetivo, aceito por todos
como “normal”. No entanto, na parede da oca a máquina era tão somente um objeto
decorativo sem nenhuma função ou
significado aparente, e ali permanecia como presa estranha da kunstwollen[2]
do indígena.
Talvez fosse até mesmo
impróprio chamá-la pelo nome que nós a designamos, pois ela já não era mais uma
“máquina de escrever”: despida da designação costumeira mediante a qual a
reconhecemos como algo que nos é familiar e conhecido , a máquina agora se
tornara algo que nenhuma de nossas
palavras conhecidas poderia representar. E ali estava ela, como um artefato que
já não servia mais para alguém datilografar pensamentos, mas que no entanto agora estava servindo para inquietar o antropólogo , e assim
forçá-lo a pensar.
Apesar de ter seu
espírito carregado de dúvidas, o antropólogo nada perguntou ao indígena a
respeito do objeto que estava em sua parede. De volta a Londres, o pesquisador
se pôs pensativo sentado à sua escrivaninha de trabalho e diante da sua máquina
de escrever. Subitamente, ele olhou para a parede de sua sala e viu repetido
nela o acontecimento que o surpreendera na habitação indígena: pois pendurados
diante de seus olhos estavam um arco e flecha... Então, o antropólogo pôde
compreender, através da atitude que ele mesmo tomara em relação aos objetos
técnicos da cultura indígena, o gesto do indígena em relação à máquina de
escrever.
Fora da cultura ou do
território simbólico de referência, qualquer objeto pode entrar em um devir
eminentemente estético, que traduz o seu caráter “inútil”, desterritorializado—
isto é, não pertencente a um território que nos seja habitual. E é essa
“inutilidade”, passível de sobrevir a toda e qualquer coisa, que nos permite
aprender algo de importante sobre nós mesmos e sobre a nossa própria sociedade
, para a qual o valor supremo é
exatamente o da utilidade.
Paradoxalmente, para
compreender melhor o valor mais
propalado de nossa civilização, foi
preciso que o antropólogo se achasse
numa outra sociedade, em tudo diferente da nossa, e descobrisse aí que a
compreensão verdadeira de alguma coisa
exige que tomemos distância não apenas da própria coisa, já que precisamos também nos afastar sobretudo de
nós mesmos , do nosso irrefreável
impulso , como dizia Nietzsche, de nos esquecermos de que somente reencontramos nas coisas aquilo que nós
mesmos nelas colocamos. O ato de reencontrar é próprio à (cons)ciência, mas o ato de colocar somente
se explica se entendermos que o fundamento de tudo é a criação, a arte.
Por esse motivo, a atitude do indígena para com a máquina de
escrever talvez também nos possa ensinar algo a respeito dos problemas
colocados pela arte contemporânea.
Pois, de maneira geral, a visão que o
artista tem do mundo efetiva-se ao
elevar à condição de artifício (isto é, de objeto criado ou inventado) todo e
qualquer objeto que o senso comum toma
como dado ou natural. Para o artista nada é óbvio . Nesse sentido, o artista se parece um pouco com uma criança.
E dentre todas as pessoas de nossa sociedade, as crianças são aquelas que, por
sua inocência, mais se assemelham aos indígenas. O artista sabe que tudo aquilo que tem um
sentido padrão e inquestionável hoje, um dia foi inventado por alguém .Tudo é
produção, arte : eis o que o artista
descobre ao exercer em si mesmo o tornar-se estrangeiro em sua própria
civilização e pátria, tornando-se um indígena no seio de sua própria cultura
“civilizada”, pois é com um olhar semelhante ao do indígena sobre a nossa
cultura que o artista, dentro de nossa própria sociedade “civilizada”, olha para as coisas que para o senso comum
parecem óbvias e com um sentido acabado.
É curioso notar que
“estranho” e “estrangeiro” têm uma mesma raiz semântica, e significam
originalmente “aquilo que foge ao padrão
e ao comum” .E dentre os artistas contemporâneos, ninguém mais do que Duchamp
nos mostrou, com seus ready-made, o caráter problematizador e inventivo da arte. Ninguém mais do que
Duchamp fez brotar ,no seio da cultura,
as forças da contracultura: as forças criativas e inovadoras da arte.
Diante das obras de Duchamp, nos sentimos um pouco como aquele antropólogo que
descobriu, em meio ao habitual e ao comum, o inesperado e o novo.
Por isso , se quisermos
sair da posição de passividade que nos leva a reconhecer nas coisas
significados prontos e inquestionáveis , devemos olhar para as coisas tidas por “úteis” e “objetivas” com um certo olhar de
estranhamento e de questionamento, como se em nós morasse, livre e insubmisso,
um eterno indígena ou um eterno artista — cuja principal obra a criar fosse não exatamente um quadro ou uma
escultura, mas a sua própria vida : para
assim produzir, como queria Foucault,
uma existência bela.
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