quarta-feira, 15 de março de 2023

Hesíodo e as cinco raças

 

                                          HESÍODO E AS CINCO RAÇAS[1]

 

 

A eternidade está longe:

brinca de tempo-será.

Manoel Bandeira

 

Os mortos e os vivos são pó.

A diferença entre eles?

Os vivos são pó que o vento levanta.

Vaidade é o nome desse vento.

Padre Antônio Vieira

 

                             

Segundo Hesíodo, há cinco tipos ou raças de homem. Cada tipo recebe como símbolo um determinado metal. O que vale , portanto, é o aspecto simbólico, não a referência material literal, empírica. Assim, há homens de ouro, de prata, de bronze, de ferro e  de barro.

Quando Hesíodo escreveu, há mais de 2. 700 anos, os homens de ouro e prata eram apenas lembrança -  uma lembrança poética, ética e mítica. No tempo em que viveu o poeta o homem de bronze já anunciava o seu ocaso, pois no horizonte próximo já vinha o homem de ferro, com seu pesado fardo a carregar. O homem de barro era anunciado pelo poeta para um futuro incerto.

O homem de ouro era aquele que vivia na companhia do divino. Não havia entre o plano humano e o divino um abismo: o homem aprendia a sabedoria sem precisar de livros. Sábio, mas não erudito, o homem crescia no corpo e no espírito: a passagem do tempo não era envelhecimento, e sim  ampliação de sua capacidade de estar à altura da companhia do divino.

Não havia escultura, pintura  ou outra arte, pois o artístico era a própria vida, que era feita mais de cores do que de formas. Os deuses ainda não tinham templo, uma vez que  a casa deles era a mesma dos homens de ouro: ambos habitavam a terra como chão e o céu como teto, sem paredes.

Porém, alguns desses homens não souberam honrar a companhia do divino: passaram a se achar seus representantes e falar por eles, com a intenção de obterem poder sobre os outros homens. Então os deuses se afastaram, e tais homens, sozinhos, desapareceram.

Os deuses criaram então os homens de prata. Estes viviam 100 anos como crianças apenas. Viviam brincando nos jardins onde nada faltava. E, cansados de tanto brincar, adormeciam e entravam em um sono sem sonhos, pois sonhos apenas existem para aqueles cuja realidade é frustrante, cabendo então ao sonho realizar o que o desejo desperto não obtém. Mas como os homens de prata de nada careciam, pois de nada sentiam falta, do sonhar dormindo não precisavam. Eles vivam na inocência de uma vida sem culpa. Após completarem 100 anos, os deuses deixavam enfim que os homens crescessem, para rapidamente envelhecer e morrer, sem dor, dormindo. Porém, nem todos se contentavam apenas com o lúdico, não poucos se tornavam tolos, caprichosos, egoístas, “infantis”: choravam pela presença dos deuses, exigindo que estes lhes fizessem favores e concedessem privilégios. Assim, o ciúme crescia entre os homens-infantis. Os deuses  novamente se afastaram, e tais homens pereceram.

Uma nova raça de homens  foi criada pelos deuses: os homens de bronze. Estes eram corajosos e destemidos, porém belicosos e querelantes. Ambicionavam o domínio, a posse , o poder. Mas como eram independentes e honravam os deuses, estes deixaram que crescessem em número e habilidades. Uma dessas habilidades se destacou: o engenho para criar armas. O homem de bronze se tornou o homem da guerra, da busca pela glória. Porém, tornou-se também o campeão da violência contra o  outro homem, fazendo os vencidos de escravos. Logo a pretensão também se tornou marca desses homens, de tal modo que quiseram guerrear com o próprio invisível onde morava o divino, revelando  assim que o poder os enlouquecera. Os deuses, sem piedade, exterminaram tais homens de bronze.

Foram criados então os homens de ferro. Estes nasceram sob a carga da necessidade: nus, precisavam cobrir o corpo; famintos, necessitavam achar alimentos; fracos , sentiram que precisavam se unir . Para tal, inventaram o Estado, as leis, as obrigações e o trabalho. Viviam mais ocupados com a terra do que com o céu. E todos os seus engenhos e conhecimentos estavam voltados para inventarem meios que amenizassem a penosa existência. Entre alguns deles , porém, não lhes satisfazia essa vida rasteira, rasa. Nesses insubmissos ao poder do mero  útil   nasceu uma fuga, uma "linha de fuga", que tomou a forma de uma metamórfica iluminação:  eles adquiriram então olhos e ouvidos para verem e ouvirem a dança e o canto das Musas Divinas. Conferindo um novo uso às mãos , não apenas para o trabalho  mas para a criação, esculpiram o que viram nas pedras, criando esculturas que davam a ver o invisível ; dando às palavras nova função, diziam por elas o que lhes cantavam as Musas, inventando assim a poesia. No meio da indigência nasceu o artista, o poeta, para com a arte "celestar as coisas do chão", conforme ensina Manoel de Barros. Hesíodo foi um desses celestadores.

Havia ainda uma quinta raça por vir , dizia o poeta. Nela não haverá mais a menor lembrança do divino, apenas imaginações parcas. Essa raça nascerá sob a marca do precário, do fugidio, do inconstante, do vazio, do "líquido" ( não enquanto fluxo poético heraclítico, mas semelhante à fluidez inconstante do Capital...) . O homem nascido nessa época será o homem de barro. Não o barro que pode ser modelado e se tornar receptáculo para o belo ou para o útil, como os vasos , ânforas e jarras; tampouco se trata do barro como meio de expressão do popular estilo, como nas pequenas estátuas modeladas pelas mãos do artista nordestino; nem são  os barros que Manoel traz como sobrenome, barros  do Pantanal onde a vida se modela vária e múltipla.    

Na mitologia, Prometeu fez o homem a partir do barro; porém a habilidade manual, a inteligência e sobretudo o coração, como sede do afeto da justiça, vieram dar vida ao peso morto. Mas o barro desse homem de barro de que fala Hesíodo é apenas o barro mesmo, barro  que apenas o vento, e não as virtudes e as ideias, põe de pé.

Das épocas de ouro e prata esse homem de barro  desejará apenas o metal, a parte material, ignorando o simbolismo. Tal homem de barro nutrirá  a mesma sanha belicosa dos homens de bronze, porém desconhecendo as virtudes guerreiras destes, sobretudo a honra. Dos homens de ferro os homens de barro herdarão as carências e necessidades, mas não a profundidade visionária de seus artistas. A principal marca do homem de barro, diz Hesíodo, será sua total insensibilidade a tudo aquilo que não seja seu próprio ego.

Eles talvez sejam os últimos dos homens, pensava Hesíodo. Porém não serão os deuses a destruí-los, pois os deuses  tais homens  terão destruídos antes,  de tal sorte que os templos que construirão  serão, na verdade, túmulos. E construirão muitos...E quanto mais vazio de deuses for tal túmulo, mais estátuas de ouro o preencherão como objeto de culto.

 Não serão os deuses que destruirão tais homens, serão eles mesmos a arma  de tal destruição, do barro ficando apenas o pó que o vento leva...

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton.         



                

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