HESÍODO E AS CINCO RAÇAS[1]
A
eternidade está longe:
brinca
de tempo-será.
Manoel
Bandeira
Os
mortos e os vivos são pó.
A
diferença entre eles?
Os
vivos são pó que o vento levanta.
Vaidade
é o nome desse vento.
Padre
Antônio Vieira
Segundo Hesíodo, há cinco
tipos ou raças de homem. Cada tipo recebe como símbolo um determinado metal. O
que vale , portanto, é o aspecto simbólico, não a referência material literal,
empírica. Assim, há homens de ouro, de prata, de bronze, de ferro e de barro.
Quando Hesíodo escreveu,
há mais de 2. 700 anos, os homens de ouro e prata eram apenas lembrança - uma lembrança poética, ética e mítica. No
tempo em que viveu o poeta o homem de bronze já anunciava o seu ocaso, pois no
horizonte próximo já vinha o homem de ferro, com seu pesado fardo a carregar. O
homem de barro era anunciado pelo poeta para um futuro incerto.
O homem de ouro era
aquele que vivia na companhia do divino. Não havia entre o plano humano e o
divino um abismo: o homem aprendia a sabedoria sem precisar de livros. Sábio,
mas não erudito, o homem crescia no corpo e no espírito: a passagem do tempo
não era envelhecimento, e sim ampliação
de sua capacidade de estar à altura da companhia do divino.
Não havia escultura,
pintura ou outra arte, pois o artístico
era a própria vida, que era feita mais de cores do que de formas. Os deuses
ainda não tinham templo, uma vez que a
casa deles era a mesma dos homens de ouro: ambos habitavam a terra como chão e
o céu como teto, sem paredes.
Porém, alguns desses
homens não souberam honrar a companhia do divino: passaram a se achar seus
representantes e falar por eles, com a intenção de obterem poder sobre os
outros homens. Então os deuses se afastaram, e tais homens, sozinhos,
desapareceram.
Os deuses criaram então
os homens de prata. Estes viviam 100 anos como crianças apenas. Viviam
brincando nos jardins onde nada faltava. E, cansados de tanto brincar,
adormeciam e entravam em um sono sem sonhos, pois sonhos apenas existem para
aqueles cuja realidade é frustrante, cabendo então ao sonho realizar o que o
desejo desperto não obtém. Mas como os homens de prata de nada careciam, pois
de nada sentiam falta, do sonhar dormindo não precisavam. Eles vivam na
inocência de uma vida sem culpa. Após completarem 100 anos, os deuses deixavam
enfim que os homens crescessem, para rapidamente envelhecer e morrer, sem dor,
dormindo. Porém, nem todos se contentavam apenas com o lúdico, não poucos se
tornavam tolos, caprichosos, egoístas, “infantis”: choravam pela presença dos
deuses, exigindo que estes lhes fizessem favores e concedessem privilégios.
Assim, o ciúme crescia entre os homens-infantis. Os deuses novamente se afastaram, e tais homens
pereceram.
Uma nova raça de
homens foi criada pelos deuses: os homens
de bronze. Estes eram corajosos e destemidos, porém belicosos e querelantes.
Ambicionavam o domínio, a posse , o poder. Mas como eram independentes e
honravam os deuses, estes deixaram que crescessem em número e habilidades. Uma dessas
habilidades se destacou: o engenho para criar armas. O homem de bronze se
tornou o homem da guerra, da busca pela glória. Porém, tornou-se também o
campeão da violência contra o outro
homem, fazendo os vencidos de escravos. Logo a pretensão também se tornou marca
desses homens, de tal modo que quiseram guerrear com o próprio invisível onde
morava o divino, revelando assim que o
poder os enlouquecera. Os deuses, sem piedade, exterminaram tais homens de
bronze.
Foram criados então os
homens de ferro. Estes nasceram sob a carga da necessidade: nus, precisavam
cobrir o corpo; famintos, necessitavam achar alimentos; fracos , sentiram que
precisavam se unir . Para tal, inventaram o Estado, as leis, as obrigações e o
trabalho. Viviam mais ocupados com a terra do que com o céu. E todos os seus
engenhos e conhecimentos estavam voltados para inventarem meios que amenizassem
a penosa existência. Entre alguns deles , porém, não lhes satisfazia essa vida
rasteira, rasa. Nesses insubmissos ao poder do mero útil nasceu uma fuga, uma "linha de
fuga", que tomou a forma de uma metamórfica iluminação: eles adquiriram então olhos e ouvidos para
verem e ouvirem a dança e o canto das Musas Divinas. Conferindo um novo uso às
mãos , não apenas para o trabalho mas
para a criação, esculpiram o que viram nas pedras, criando esculturas que davam
a ver o invisível ; dando às palavras nova função, diziam por elas o que lhes
cantavam as Musas, inventando assim a poesia. No meio da indigência nasceu o
artista, o poeta, para com a arte "celestar as coisas do chão", conforme
ensina Manoel de Barros. Hesíodo foi um desses celestadores.
Havia ainda uma quinta raça por vir , dizia o poeta. Nela não haverá mais a menor lembrança do divino, apenas imaginações parcas. Essa raça nascerá sob a marca do precário, do fugidio, do inconstante, do vazio, do "líquido" ( não enquanto fluxo poético heraclítico, mas semelhante à fluidez inconstante do Capital...) . O homem nascido nessa época será o homem de barro. Não o barro que pode ser modelado e se tornar receptáculo para o belo ou para o útil, como os vasos , ânforas e jarras; tampouco se trata do barro como meio de expressão do popular estilo, como nas pequenas estátuas modeladas pelas mãos do artista nordestino; nem são os barros que Manoel traz como sobrenome, barros do Pantanal onde a vida se modela vária e múltipla.
Na
mitologia, Prometeu fez o homem a partir do barro; porém a habilidade manual, a
inteligência e sobretudo o coração, como sede do afeto da justiça, vieram dar
vida ao peso morto. Mas o barro desse homem de barro de que fala Hesíodo é
apenas o barro mesmo, barro que apenas o
vento, e não as virtudes e as ideias, põe de pé.
Das épocas de ouro e
prata esse homem de barro desejará
apenas o metal, a parte material, ignorando o simbolismo. Tal homem de barro
nutrirá a mesma sanha belicosa dos
homens de bronze, porém desconhecendo as virtudes guerreiras destes, sobretudo
a honra. Dos homens de ferro os homens de barro herdarão as carências e
necessidades, mas não a profundidade visionária de seus artistas. A principal
marca do homem de barro, diz Hesíodo, será sua total insensibilidade a tudo
aquilo que não seja seu próprio ego.
Eles talvez sejam os
últimos dos homens, pensava Hesíodo. Porém não serão os deuses a destruí-los,
pois os deuses tais homens terão destruídos antes, de tal sorte que os templos que
construirão serão, na verdade, túmulos. E
construirão muitos...E quanto mais vazio de deuses for tal túmulo, mais estátuas
de ouro o preencherão como objeto de culto.
Não serão os deuses que destruirão tais
homens, serão eles mesmos a arma de tal
destruição, do barro ficando apenas o pó que o vento leva...
[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton.
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