quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

devir-indígena

 

Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um indígena e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca  como se fosse um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros.

Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura branca autointitulada “civilizada”. O antropólogo nada perguntou ao indígena, e retornou   a Londres para tentar entender aquele ato que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto.

 O antropólogo   consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que explicasse   o gesto do indígena.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como objeto artístico...Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o indígena fez com a máquina de escrever...

Graças ao ato artístico-subversivo do indígena, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos. 

O indígena era o “outro” do branco, mas o branco também era o “outro” do indígena. Nem todos são brancos, nem todos são indígenas, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal.

É essa universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele sempre quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal” ( como diz Manoel de Barros).

O indígena da narrativa  nos ensina que talvez a arte e a educação comecem no olhar, um olhar que interroga e recria, também criticamente, o sentido de nós mesmos e do mundo .

 Um olhar assim é sempre pensante, questionante, insubmisso , estrangeiro. Ele é estrangeiro não no sentido literal , e sim porque ele suspende nossas habituais certezas e nossos roteiros prévios acerca de como viver e agir. Ele não é um olhar de fora, mas sim um olhar ainda não colonizado por aquilo que está estabelecido e etiquetado pelos poderes dominantes.

Nesse sentido, pensar é sempre produzir em nós um devir-indígena no seio mesmo de nossa sociedade que se intitula “branco-civilizada”. É preciso construirmos um devir-indígena nos parlamentos, nas sociabilidades e também nos espaços acadêmicos onde são produzidos nossos conhecimentos.

Pensar essa Diferença que o indígena exerceu é  fazer dela um “devir-outro” de nós mesmos . Precisa haver   um  devir-indígena  em toda educação-libertária  cujas lições sejam  arcos e flechas em ação de resistência e defesa da comunidade, e não  meros enfeites teóricos.

Para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a barbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  o olhar ancestral que também é subversivo, crítico e  criativo : nada mais contrário ao olhar vestido com uniformes militares do fascista-genocida e seus garimpeiros do que o olhar nu e livre do indígena.

 

 

“Nós, os bruxos.” (Deleuze & Guattari)

 

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os indígenas ”. (Manoel de Barros)




 



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